domingo, 20 de junho de 2010

José Saramago, por Manuel Gusmão


No dia da morte de José Saramago, creio que este texto que o Manuel Gusmão escreveu para o 5dias será uma das mais simples e camaradas  homenagens, que se poderão ler durante os próximos dias. (Tiago Mota Silveira)

Saramago é um escritor que se conquistou a si mesmo, que encontrou a sua maneira em pleno percurso. Que fez o seu caminho, caminhando. A fase da sua obra que vai produzir essa maneira que muitos reconhecem como a marca da sua assinatura, vai de 1977, ano fecundo da narrativa em português, em que publica Manual de Pintura e Caligrafia, a 1981, ano em que sai a 1º edição da sua Viagem a Portugal. Entre esses dois anos e esses dois livros, Saramago publicara Objecto quase (1978), “O ouvido” integrado na obra colectiva Poética dos Cinco Sentidos (1979), Levantado do chão (1980) e duas peças de teatro – A noite (1979) e Que farei com este livro? (1980). Se é com Memorial do Convento (1982) que o seu êxito se torna uma evidência, inclusivamente à escala internacional é nessa fase (1977-1981) assistimos à descoberta e invenção do fundamental do dispositivo narrativo que o vai acompanhar ao longo da obra. Manual de Pintura e Caligrafia é na ficção, uma meditação sobre os problemas da representação; a dissociação entre representação e semelhança, preparando assim a desenvoltura na construção dos mundos narrativos na obra posterior. A Viagem a Portugal dá conta da espessura significativa da radicação no território pátrio da ficção de Saramago. Em Levantado do Chão, surge a famosa frase em que várias personagens, inclusivamente o narrador, podem falar; essa frase que é assim dita em diálogo, mostrando essa admirável evidência da socialidade da linguagem. Este romance dispõe já da construção de uma figura de narrador marcado pela “auralidade”, de uma frase articulada por um nítido ritmo sintáctico. E sobretudo começa a funcionar um princípio narrativo que parte de uma negativa ou negação imposta a uma história já contada pelos vencedores ou de qualquer fora por uma historiografia oficial. Essa negatividade marca a relação entre ficção e história no que se poderia considerar a primeira fase da nova maneira de Saramago. Nela conta-se sempre de outra maneira algo que já foi contado, designadamente porque se conta algo que nunca mereceu ser narrado, nomeadamente a história dos servos e dos que transportam a pedra e constroem Mafra. Assim é em Memorial do Convento, Em O ano da morte de Ricardo Reis, História do Cerco de Lisboa, O Evangelho segundo Jesus Cristo. Com A jangada de Pedra anuncia-se o que virá a ser um outro dispositivo narrativo, característico de uma segunda fase da maneira “Saramago” que se afirmará inicialmente em Ensaio sobre a Cegueira e Todos os nomes e continuará depois. A este novo dispositivo chamarei de alegoria do presente.
José Saramago morreu. Inicia-se o seu segundo combate ou uma nova fase do seu combate de há muito: a luta pelo reconhecimento pleno da sua obra. A luta pela conquista e fidelização de leitores, pela leitura e releitura dos seus livros. Mas não só dos seus, e sim pela leitura dos grandes do passado ou dos seus contemporâneos: Camões, O padre António Vieira, Almeida Garrett, Camilo e Eça, Jorge de Sena ou Rodrigues Miguéis, numa lista incompleta. Portugal é um país em que historicamente se acumularam atrasos culturais e uma enorme fragilidade das suas instituições culturais. Isso explica em parte que a morte de um escritor seja muitas vezes a sua entrada num limbo da memória, num período de descaso e de esquecimento. O Nobel que ganhou é em relação a esse comportamento do futuro uma protecção simbólica, é certo, mas não suficiente por si só. Um pouco por todo o mundo (não estou a exagerar) foi lido e amado por leitores que, em tempos de derrota e de solidão, reconheceram nele um dos seus, alguém que ocupava o mesmo campo social à escala planetária. Esse facto foi caricaturado por alguns, que atribuíram o seu sucesso a uma “conspiração internacional” de comunistas ou cripto-comunistas.
Agora que morreu, nós temos responsabilidades acrescidas nesse combate. E não é preciso “conspiração” nenhuma. Basta cuidar do nosso património literário e artístico. Ele permaneceu fiel à longa e denegada “tradição dos oprimidos” (Walter Benjamin). Nós que nessa tradição temos vindo, sabemos que a memória é uma condição do desejo de futuro; sabemos que o cuidar da memória integra o longo trabalho da emancipação. Eu sei que há quem deteste palavras como estas – memória, futuro, trabalho, emancipação – , mas que hei-de fazer, ó boas almas, é que ele era um dos nossos.


José Saramago, por Manuel Gusmão

Um comentário:

Sylvia Beirute disse...

sem duvida um belo texto. *

BRASIL NUNCA MAIS

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