Leia a crítica:
“Uma Noite em 67”: Ecos de rebeldia
Cloves Geraldo *
Documentário de Renato Terra e Ricardo Calil põe na tela o dia 21 de outubro de 67, final do III Festival da Musica Popular Brasileira da TV Record, e relembra o poder dos festivais realizados durante a ditadura militar
Nada mais emblemático dos anos 60, no Brasil, do que os festivais de música popular. Eles canalizavam as reprimidas manifestações políticas, permitindo aos músicos e ao público externar suas frustrações e protestar contra a ditadura dos generais. Com músicas que refletiam as angústias da população, lotavam o auditório da TV Record e ampliavam o clamor de liberdade da maioria silenciosa. Clima que os diretores Renato Terra e Ricardo Calil passam ao espectador através de entrevistas com músicos e jurados em 67 e hoje em seu filme “Uma Noite em 67”.
Às vezes dá para sentir que havia algo mais do que competição musical nos festivais. Impressão não descartada por seu produtor, Solano Ribeiro, ao dizer que eles, com o tempo, ganharam clamor político. Este aparece na “polêmica” sobre o uso da guitarra nos arranjos e apresentações dos concorrentes, motivo de passeata e discussão entre os próprios músicos e jurados. Alguns; casos de Caetano Veloso e do crítico, compositor e jornalista Nelson Mota, achavam (e continuam a achar) que o debate era inócuo, secundário, pois se tratava apenas de um instrumento musical. Destituído, portanto, de uso político-ideológico.
No entanto, o jornalista Chico Assis vê a instrumentalização da guitarra como necessária ao combate aos EUA, que apoiava a Ditadura Militar. Uma forma, portanto, de chamar atenção para o imperialismo cultural, que usava seu “lixo musical” para invadir o mercado fonográfico nacional. Uma visão que mostra a carência de espaço para manifestação político-ideológica durante o regime militar. Naqueles anos, de forte repressão, perseguição às esquerdas e à oposição, qualquer manifestação era logo sufocada e os participantes mandados para os porões dos serviços de inteligência.
Podiam ter sido outros
símbolos do imperialismo
Então, não importava se fosse chapéu de cowboy, Coca-Cola ou guitarra o instrumento usado pelos artistas e a esquerda para protestar contra a censura, o imperialismo ianque, cassação de mandatos políticos e a ausência de liberdades democráticas no país. A guitarra era a forma de luta válida para as esquerdas não se acomodarem à mordaça dos generais. Até mesmo o violão de Sérgio Ricardo, atirado ao público, que o impediu de cantar sua “Beto Bom de Bola”, reflete a tensão do momento. Tão significativo quanto o apelo de Geraldo Vandré, que penou para levar adiante a apresentação de sua “Pra não dizer que não falei de flores”, no Festival de 68, e cunhou a emblemática frase: “A vida não se resume em festivais”.
Havia, entretanto, inquietação no teatro: José Celso Martinez Correia (“Roda Viva”); no cinema: Glauber Rocha (“Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro”), e em outras artes, embora “Uma Noite em 67” se concentre só na final do III Festival. Apenas o espectador mais velho pode antever nas letras das músicas fragmentos dessas manifestações. Edu Lobo clamando por liberdade: “Quem me dera agora eu tivesse a viola pra cantar, em “Ponteio””; Chico Buarque denunciando a falta de “voz ativa”, em “Roda Viva”; Gilberto Gil levando “José/João” para o redemoinho de uma vida que lhe escapa em “Domingo no Parque”; e, por fim, Caetano Veloso, na cinematográfica “Alegria/Alegria”, destoa dos demais ao fazer uma ode aos beatniks, ao roadmovie, à Coca-Cola, símbolo maior do consumismo ianque, e à então musa da Nouvelle Vague, Brigitte Bardot, que depois se revelou racista e conservadora.
A inquietação de Gil e Caetano levou-os adiante. Ao Tropicalismo. Retomada do “Manifesto Pau Brasil”, de Osvald de Andrade, dos ritmos nordestinos (forró, coco, maxixe), do circo mambembe, fundidos ao rock dos Beatles, Jefferson Airplane, Rolling Stones, ao psicodelismo, movimento hippie e concretismo, cujo ecletismo chacoalhou a música, o teatro e o cinema (“Macunaíma”, de Joaquim Pedro de Andrade). E foi pisoteado pelas botas dos generais, que exilou seus líderes: Velloso e Gil. Dele restou o inquieto e criativo Tom Zé e crias tardias, como Titãs.
“Uma Noite em 67”, no entanto, não utiliza a estética de ruptura da época. É por demais comportado. Tem o formato de um documentário de TV, com entrevistas e cenas de arquivo do festival e sequências de entrevistas estáticas. Centrado na noite de 21 de outubro de 67, seu olhar só deixa os músicos e a platéia para passear pelos bastidores. É quando oferece momentos engraçados com os entrevistadores Randal Juliano e Cidinha Campos, descontraídos, relaxando os concorrentes, dando espaço aos músicos. Mostram a faceta bem humorada do Roberto Carlos, líder da “Jovem Guarda”, programa musical cor de rosa da TV, que não incomodava os generais.
É, assim, filme de acomodação de opiniões, cheias de retoques, bem ao estilo do conservadorismo atual, que foge a qualquer tipo de comprometimento político-ideológico. Quando muito atira a esmo.
“Uma Noite em 67.”. Brasil. Documentário. 2010. 93 minutos. Direção: Renato Terra. Ricardo Calil. Elenco: Chico Buarque, Gilberto Gil, Edu Logo, Caetano Veloso, Sérgio Ricardo.
Portal Vermelho
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