segunda-feira, 12 de maio de 2008

PARA LUGAR NENHUM

O repórter se posiciona em uma esquina de São Paulo. Gravador na mão, espera o sinal fechar para entrevistar os motoristas que param ao sinal fechado, assim como os pedestres que passam pra lá e pra cá.
“Podia ter trazido uma câmera”, pensou. Era incrível ver aquela multidão se empurrando para chegar mais rápido em algum lugar.
Alguns não paravam. Negavam-se a falar com o repórter - “claro que se fosse TV, seria diferente, daria para falar rapidinho às câmeras”. Alguns até xingavam, mal humorados pela abordagem. Mas a maioria parava e o atendia com cordialidade.
- Olá, você poderia me conceder uma brevíssima entrevista? É para uma reportagem do meu jornal. Aonde vai com tanta pressa?
- Eu, com pressa? Não, impressão sua. Estou indo ao shopping comprar um sapato. Hoje é meu dia de rodízio[1] e vim de metrô.
- Mas, observei que você está quase correndo. Tem outro compromisso?
- Não, não, apenas não quero perder tempo. Depois vou dar uma olhada por aí. Só vou ao trabalho à tarde. Trabalho aqui perto.
Quase foi atropelado por uma motocicleta que tentava ultrapassar pelo espaço entre o meio fio e o carro da esquerda. A moto freou bruscamente no sinal fechado. Rapidamente ele se recuperou do susto e correu a alcançar o dito motoqueiro.
- Ei, amigo, estou fazendo uma reportagem pro meu jornal. Me responde uma perguntinha?
- Fala aí. Rápido, ‘mêo’. Que tô com muita pressa.
- É, eu percebi. Você quase me atropelou.
- Qual é, ‘mêo’?
- Tá, desculpe, eu só queria saber por que tanta pressa?
- ‘Mêo’, tu não sabe que as moto ganha por entrega? O patrão quer pro-du-ti-vi-da-de, tá ligado? Se a gente vacila, nêgo chama outro, cara.
- Mas não é perigoso? Você pode atropelar alguém... ou um carro bater em você...
- Faz parte, cara. De vez em quando morre um colega. Foda!
- Tá, brigadão! Boa sorte.
“É. Não é fácil, não. O cara tem que disputar o mercado. O patrão não quer nem saber. Quer é tantas entregas por hora e que chegue tudo na maior pontualidade. Os entregadores que se virem. Se vacilar, eles mandam embora. Ainda mais que, hoje em dia, eles dão sempre um jeito de burlar a legislação trabalhista. Fazem contrato por serviço dos caras, sem nenhum direito e ainda exigem que o cara entre com a ferramenta de trabalho, a moto. Nesse caso dá pra entender a pressa.”
Ao lado, um carro buzinava com irritação. Há meio segundo o sinal abrira e o carro da frente ainda estava no mesmo lugar. O jornalista lembrou sorrindo do genial Barão de Itararé - ou será do Millor? - e a sua definição de fração de segundo: é o tempo no qual o sinal abre e o motorista atrás buzina.
No próximo sinal vermelho abordou uma motorista. Era uma mulher jovem, que vinha se maquiando. A bolsa aberta no banco do passageiro mostrava o estojo com batom, pó, lápis e outros apetrechos. Ela ia para o trabalho. Era publicitária. Não tinha conseguido se maquiar antes de sair de casa. Na verdade, confessou, nunca conseguia. Dormia tarde, levava o notebook da empresa para casa quando tinha que entregar um trabalho no dia seguinte. O patrão era implacável, explicou ela. O prazo era sempre ditado por ele e não havia argumento que o fizesse estender ‘o dead line’ (povinho pra gostar de falar estrangeirismo, os publicitários).
Depois de cerca de quinze entrevistas, o profissional foi para casa. Ele escrevia as matérias diárias de casa. Escrevia ainda uma coluna semanal. Tomou uma ducha, vestiu a bermuda, ligou o computador. A reportagem mexeu um pouco com ele. Nunca havia refletido sobre essa pressa, essa correria em que vivemos atualmente.
Levantou-se da mesa de trabalho, ligou o gravador e se pôs a ouvir as entrevistas. Depois acendeu um baseado e foi buscar nos vinis[2] um disco do Sidney Miller. Lembrara especialmente da música “Pois é, pra quê?” desse compositor. (A vida passa no meu cigarro / Quem tem mais pressa que arranje um carro / Prá andar ligeiro, sem ter porqu / Sem ter prá onde, pois é, prá quê?).
Decidiu que usaria a música para ilustrar a sua coluna de Domingo próximo. Escreveria sobre essa pressa de chegar a lugar nenhum do mundo de hoje e compararia com a vida dos nossos pais.


[1] Em São Paulo há rodízio dos carros, para tentar diminuir o engarrafamento no trânsito.
[2] Disco em vinil, também conhecidos como bolachões ou elepês.

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