Paris, França, 12 de Outubro de 2009
Prezado Walter Maierovitch,
Ao me atacar, ou incansavelmente atacar Cesare Battisti, o senhor está golpeando alvos fáceis e sabe disso. Pois do seu lado, e não do nosso, estão o poderoso governo italiano e sua embaixada.
Desde mais de dois anos o senhor vem se fazendo o eco do governo italiano, cuja pressão, por intermédio da imprensa, efetuou a proeza de transformar Cesare Battisti, um total desconhecido, um escritor pacífico, num “monstro” imaginário, num homem jogado à opinião pública a custo de incontáveis mentiras. Isso o senhor sabe, isso o senhor tem feito, a despeito do parecer dos maiores e mais respeitados juristas brasileiros. Obedecendo a motivações que desconheço, o senhor apóia esse governo italiano. Quanto a mim, represento modestamente a História. Pois é este meu ofício, sendo pesquisadora em história e arqueóloga antes de ser escritora.
Entre o atual governo italiano e a História ou, em outras palavras, entre a política e a justiça, o combate está hoje desigual para Cesare Battisti. Mas, e amanhã? A História sempre triunfa diante das indignidades da Pequena história, mesmo que tenham de se passar dez, ou cem anos. De modo que o senhor talvez vença hoje (bela vitória, de fato, essa da morte de um homem), mas há de perder amanhã perante a História.
O senhor conhece os invariáveis movimentos da opinião pública: iludida pelo discurso da mídia, sem tempo para analisá-lo, aceita a “presa” que lhe oferecem. Tão logo é abatida essa presa, porém, tão logo cessa o “perigo”, sua sabedoria desperta e ela acaba dando a volta, pedindo para conhecer “o outro lado”. Nessa lei da inversão não existe exceção. Assim, quando Cesare Battisti estiver preso, ou morto, a opinião pública irá dar a volta. E há de escutar “o outro lado”, o lado da verdadeira História. Creio que seja honesto apresentar-lhe esta verdade.
Suponho que o senhor conheça o nome dos três únicos e verdadeiros assassinos do grupo armado dos PAC, assim como o de seus cúmplices ou instigadores. Cesare Battisti não se inclui entre eles. Esses homens e mulheres constituíram-se “arrependidos” e combinaram entre si jogar seus próprios crimes nas costas de Battisti. Arriscados a pegar pesadas penas, juntos optaram por acusar em seu lugar um companheiro ausente, e a este preço salvaram suas vidas. É algo que podemos compreender, mas em hipótese alguma podemos aceitar que ainda hoje essa falsa denúncia possa condenar Cesare Battisti, o único entre eles que ainda se encontre preso.
Se excetuarmos as denúncias desses homens e mulheres, eles próprios assassinos ou cúmplices de assassinos, o senhor não foi capaz de publicar um único testemunho digno desse nome, nem um único elemento material que definisse a culpa de Cesare Battisti. Que belas testemunhas, de fato. Todos esses arrependidos estão hoje em liberdade, alguns desde muito tempo, tal como o chefe do grupo, Pietro Mutti, seu “subchefe” Cavallina, e os quatro homens do comando que matou Torregiani. Cesare Battisti foi o único condenado à prisão perpétua, não tendo ninguém para garantir sua defesa. Pois, como suponho que saiba, eram falsas as três “procurações” por meio das quais ele foi representado em seu segundo julgamento. Se for de seu interesse, podemos publicá-las em Carta Capital. Suponho que saiba igualmente que houve um primeiro julgamento coletivo dos PAC, ao qual Cesare Battisti esteve presente e que não o condenou por nenhum dos quatro homicídios. A Itália o terá informado sobre esses fatos, ou será que o induziu em grave erro?
Cesare Battisti jamais matou ninguém. O chefe Pietro Mutti foi acusado de ter atirado em Santoro. Ameaçado de prisão perpétua, acusou Battisti em seu lugar e apontou Spina como sendo sua cúmplice. Ocorre que Spina foi declarada inocente. Mutti mentiu novamente, acusando Battisti de ter atirado em Sabbadin (o qual pertencia ao partido fascista MSI e tinha por sua vez matado um homem). Giacomin, porém, confessou ter ele próprio atirado. O senhor sabia disso? Então Mutti, mais uma vez, acusou Battisti de ter “planejado” o crime contra Torregiani (um homem de extrema direita que também já havia matado um homem, o que explica, embora não justifique, as represálias do grupo dos PAC), sendo que as reuniões foram realizadas no apartamento do próprio Mutti. O qual mentiu novamente ao acusar Cesare de ter atirado em Campagna, sendo que a arma pertencia ao assassino de Torregiani e que uma testemunha descreveu um agressor vinte centímetros mais alto que Battisti. O juiz Armando Spataro, por sua vez, aceitou procurações que sabia serem falsificadas, aceitou as mentiras dos arrependidos, e foi informado sobre as torturas.
Cesare Battisti não “fugiu da justiça”. Ele já havia sido julgado e condenado a 12 anos de prisão por “subversão”. Como poderia imaginar que seria julgado uma segunda vez pelos mesmos fatos?
É certo que durante a presidência de Jacques Chirac, amigo de Berlusconi, a mais alta Corte de Justiça francesa e a Corte Europeia concederam a extradição. Como? Por quê? Na Europa, não se pode mandar para a prisão uma pessoa que não tenha comparecido ou sido representada em seu processo. Ora, essas Cortes foram informadas de que as “procurações” de Cesare Battisti eram falsificações, forjadas pelos arrependidos de modo a que sua futura condenação se tornasse irrevogável. Era esse um obstáculo intransponível. De que maneira essas Cortes puderam superá-lo? Fechando os olhos e considerando as procurações como verdadeiras. O senhor sabia disso?
Sim, a justiça dos anos de chumbo recorreu regularmente à tortura. Foram denunciados treze casos só no primeiro processo coletivo dos PAC. Coloco esses depoimentos à sua disposição.
Sim, os tribunais italianos, quase todos dirigidos por juízes associados ao Partido Comunista, então aliado ao governo de Democracia Cristã, condenaram 4.700 ativistas de extrema esquerda, e deixaram em paz todos os de extrema direita, embora estes tivessem causado muito mais mortes com seus atentados a bomba.
Sim, o próprio ministro do Interior daquela época, Francesco Cossiga, que organizou a repressão e posteriormente foi duas vezes Presidente da República italiana, se manifesta a esse respeito. Coloco as declarações de Cossiga à sua disposição, assim como todos os elementos que provam a inocência de Cesare Battisti, propondo que os publique em primeira mão antes que sejam publicados por outro veículo.
Existe uma opção intelectual e moral a ser feita entre a versão política enganosa do governo italiano e a versão baseada na autenticidade dos documentos e na tenacidade da História. A escolha é sua, entre as mentiras do tempo imediato e o veredicto de amanhã.
Atenciosamente,
Fred Vargas
Fred Vargas (Frédérique Audoin-Rouzeau) é historiadora, arqueóloga e escritora francesa.
3 comentários:
É comovente a dedicação da Fred à causa do Cesare.
No entanto, sou absolutamente cético quanto à boa fé do Walter Maierovitch.
Acredito mesmo é no que o Cesare me disse, quando o entrevistei na "Papuda": Maierovitch utiliza em sua coluna informações/distorções que só poderiam lhe ter sido repassadas pelo procurador Spataro, um dos personagens mais sinistros da repressão à ultraesquerda italiana.
Compartilho a visão da Fred, de que a História nos fará justiça, a todos.
Mas, nem precisaremos esperar tanto: não só tenho absoluta certeza de que o refúgio de Cesare será confirmado, como observo a crescente desmoralização de Maierovitch, Mino Carta e a "Carta Capital".
Esta batalha já foi vencida, Fred. Tendo apenas a Internet a nosso dispor, acabamos com a credibilidade dos serviçais do governo italiano: o principal, que até agora não se conformou com o papel histórico deplorável do PCI nos anos de chumbo; e seu escudeiro, um jurista tão medíocre que não ousou discutir o Caso Battisti com um mero jornalista como eu, no site "Conversa Afiada".
Ele fugiu em desabalada carreira e está correndo até hoje.
Quanto ao Mino, além de não ousar debater comigo nem com o Rui Martins, apesar dos vários desafios que lhe lançamos, ainda teve de encerrar o seu próprio blogue, inconformado com as críticas dos internautas à posição rancorosa e fascistóide que defendia no Caso Battisti.
Prezada Fred, e' com bastante tristeza que leio essa sua carta ao Maierovitch. Suponho faca parte daquele grupo de intellectuais que ficaram fascinados ao ouvir as historias dos gloriosos revolucionarios italianos dos anos '70-'80,e no caso especifico do Cesare Battisti a triste historia que ele foi condenado injustamente e somente por delacao. Aconselho ler as motivacoes das sentencas de condana definitivas editadas pelos Tribunais italianos nas quais ficam evidentes as provas materiais de condenacao do Battisti, nao somente baseada nessas delacoes. Vale lembrar que todos os processos foram julgado regulares pela avaliacao da Corte Europeia dos Direitos Humanos, desmistificando assim outra crenca que os mesmos foram feitos em modo irregular.Como italiano que mora no Brasil faz alguns anos mas tendo muito viva a memoria dos anos de chumbo que passei na Italia, o meu pensamento a respeito do Battisti e dos outros ainda em liberdade (independente da cor politica, sejam de esquerda ou de direita) desejo, tambem pelo respeito as vitimas do terrorismo, que ele cumpre a pena pela qual foi condenado em Italia. Desejo, o meu, compartilhado pela esmagadora maioria dos italianos.
Michele
Michele
Não deu para entender bem o que você quis dizer. Deixa ver se eu entendi:
1. A "maioria esmagadora dos italianos" a que você se refere é aquela minoria que gostava de esmagar comunistas e anarquistas?
2. Os "intelectuais que ficam fascinados com os gloriosos revolucionários" do seu texto, por acaso é a esquerda, que evidentemente defende seus camaradas?
3. Você fica triste sempre que alguém defende Batistti mesmo enfrentando a autoridade de um Mayerovitch, e nunca fica triste ao ver a possibilidade de uma pessoa passar o resto de sua vida nas masmorras do Berlusconi?
Patricio
Postar um comentário