O livro Memórias de uma Guerra suja, do amigo Rogério Medeiros e Marcello Netto será, sem dúvida, uma das referências importantes para guarnecer a Comissão da Verdade. Não há dois lados a investigar, isso é proselitismo de quem quer justificar o terror de Estado. A farsa cai por terra, a partir da ampla divulgação de documentos disponíveis nos arquivos e de reportagens como esta, do livro reportagem, que entra para a história do país.
Vale a pena ler a resenha de Pedro Pomar.
Notas sobre o “livro-bomba” do ex-delegado Guerra
Já chegou às livrarias “Memórias de uma guerra suja”
(editora Topbooks, 291 páginas), que traz longo depoimento do ex-delegado de
polícia Cláudio Guerra sobre os crimes que cometeu a serviço da Ditadura
Militar, recolhido pelos jornalistas Rogério Medeiros e Marcelo Netto. São
fortes revelações, que causaram algum impacto na mídia depois que o jornalista
Tales Faria (IG) antecipou diversos trechos do livro. Entre os ex-presos
políticos e os familiares das vítimas da Ditadura causou reações distintas: uma
parte enxerga nele uma contribuição positiva ao desvendamento das atrocidades
cometidas pelos militares e por seus cúmplices civis, mas há quem o considere
uma provocação destinada a tumultuar o ambiente pré-Comissão Nacional da
Verdade.
Após ler a obra, convenci-me de que se trata de
importantíssimo subsídio para uma investigação acurada de diversos
episódios-chave da repressão política levada a cabo pelo regime militar. Isso
não quer dizer que se deve tomar por integralmente corretas e confiáveis as
versões apresentadas por Cláudio Guerra para os muitos casos apresentados no
livro. Mas uma parcela substancial das suas narrativas parece crível e merece,
no mínimo, uma apuração séria de órgãos como Polícia Federal, Ministério
Público Federal, Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos e, finalmente, a
Comissão Nacional da Verdade, quando constituída.
credencias de Paulo Guerra com
licença para matar
|
É bem verdade que o modo de contar do ex-delegado do
Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) do Espírito Santo, pontilhado de
autoelogios (por exemplo, “exímio atirador de elite”, p. 35), de histórias que
parecem fantasiosas (como a viagem de ida e volta a Angola, num só dia, para
executar um atentado à Rádio Nacional daquele país, p. 139), e de passagens
obscuras ou mal explicadas não ajuda a formar opinião favorável. Mas suas
afirmações sobre certos episódios são verossímeis, o que ficou demonstrado por
apurações iniciais.
A Usina Cambahyba |
Uma das mais impactantes revelações de Guerra é a de que
pelo menos onze corpos de militantes de esquerda torturados e assassinados pela
Ditadura Militar foram incinerados por ele na década de 1970, no forno da usina
de açúcar Cambahyba, localizada em Campos (RJ) e pertencente ao então
vice-governador Heli Ribeiro Gomes. No livro ele cita dez corpos, mas em visita
posterior ao local o ex-delegado lembrou-se de outro. A visita foi acompanhada
por um dos jornalistas co-autores (Marcelo Netto), por agentes da Polícia
Federal e pelo advogado Antônio Carlos de Almeida Castro. Segundo o advogado,
um antigo funcionário relatou a presença frequente de militares na usina.
Neste caso específico, as declarações do ex-delegado são
bastante consistentes. A narrativa do fato tem coerência interna. Além disso, a
“solução” encontrada para fazer sumirem os corpos dos militantes assassinados é
tão brutal quanto outras já conhecidas (esquartejamento, queima de ossadas). As
datas também coincidem. Guerra diz que a decisão de incinerar foi tomada em
fins de 1973 (p. 50). As pessoas cujos corpos teriam sido incinerados foram
capturadas e assassinadas em dezembro de 1973, como João Batista Rita (M3G) e
Joaquim Pires Cerveira (FLN); em 1974, como João Massena Melo, José Roman, Davi
Capistrano, Luis Ignácio Maranhão Filho (todos do PCB), Fernando Santa Cruz e
Eduardo Collier Filho (ambos da APML), Ana Rosa Kucinski Silva e Wilson Silva
(ambos da ALN); em 1975, como Armando Frutuoso (PCdoB).
Também do ponto de vista geográfico a explicação é
plausível, pois quase todos esses militantes passaram pelos cárceres do
Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa
Interna (DOI-CODI) do I Exército, na rua Barão de Mesquita, no Rio de Janeiro,
e vários foram sabidamente conduzidos à “Casa da Morte”, em Petrópolis.
Portanto a usina Cambahyba era relativamente próxima do local onde as pessoas
foram assassinadas.
Frutuoso, membro do comitê central do PCdoB, foi assassinado
em setembro de 1975, quando o general Leônidas Pires Gonçalves chefiava o
Estado-Maior do I Exército, cabendo-lhe, neste posto, o comando do respectivo
CODI. Portanto, os torturadores do DOI se reportavam a Leônidas. Mais tarde
ministro do Exército no governo Sarney, ele sempre negou ter havido torturas
(até mesmo em 2010, em cínica entrevista ao jornalista Geneton Moraes Neto para
a Globonews). Mas a morte violenta e o desaparecimento do corpo de Frutuoso foram
obra de seus comandados, deram-se portanto sob sua responsabilidade.
Destaque-se, contudo, que Guerra não cita o general.
Outra revelação importante diz respeito ao paradeiro do
corpo de Nestor Veras, militante que ingressou ainda jovem no PCB, nos anos
1940, desaparecido desde abril de 1975 sem qualquer pista. Guerra assume a
execução de Veras, que “tinha sido muito torturado e estava agonizando” na
Delegacia de Furtos e Roubos de Belo Horizonte. “Eu lhe dei o tiro de
misericórdia, na verdade dois”, relata (p. 39). O membro do comitê central do
PCB teria sido enterrado numa mata próxima a Belo Horizonte, “na estrada para
Itabira” (p. 64).
convite |
O ex-delegado descreve também no livro como e onde
aconteciam as reuniões dos comandantes da tortura no Rio de Janeiro: no
restaurante Angu do Gomes, próximo à Praça Mauá, e numa sauna vizinha.
Reportagem posterior à publicação dos trechos do livro confirmou a existência
do local, e o antigo dono atestou informações de Guerra sobre os
frequentadores. Entre eles, os coronéis Freddie Perdigão, figura central do
DOI-CODI do I Exército, Marcelo Romeiro da Roza, Otelo da Costa Ortiga (p.
177), todos do Exército, o comandante Antonio Vieira, da Marinha, e outros
oficiais superiores.
O Angu do Gomes, como explica o livro com riqueza de
detalhes, servia de fachada às atividades da “comunidade de informações” e da
entidade que lhes dava cobertura financeira, a Irmandade Santa Cruz dos
Militares. Quando a conjuntura mudou e a extrema-direita militar abrigada nos
DOI-CODI sentiu-se traída pela processo de abertura política, o restaurante
passou a ser o epicentro de uma permanente conspiração “contra Geisel, Golbery
e Figueiredo” (p. 119).
O clímax desse processo conspirativo foi o frustrado
atentado ao Riocentro, no Rio de Janeiro, na noite de 30 de abril de 1981,
planejado pelos comandantes do DOI-CODI do I Exército com a finalidade de acuar
a esquerda (e o governo). Os conspiradores pretendiam explodir três bombas no
local, onde se realizava um grande show em homenagem ao Dia do Trabalho, com a
participação de artistas de renome nacional. “Participei do atentado ao
Riocentro e fiz parte das várias equipes que tentaram provocar aquela que seria
a maior tragédia, o grande golpe contra o projeto de abertura democrática”,
conta Guerra.
Para azar dos assassinos e sorte de quem participava do
show, uma das bombas explodiu acidentalmente no colo do sargento Guilherme do
Rosário, especialista em explosivos do DOI-CODI, que morreu dentro do carro em
que ainda se encontrava com outro militar, o capitão Wilson Machado, que ficou
gravemente ferido. O plano tresloucado, que poderia ter causado a morte de
centenas de pessoas (as portas foram propositalmente trancadas, o policiamento
previamente cancelado), foi rapidamente descoberto pela imprensa. Os nomes de
Perdigão, Roza, Ortiga e outros constavam da caderneta do sargento.
Parece razoavelmente convincente a narrativa de Guerra sobre
o atentado ao Riocentro. Uma das novidades, em relação ao que já se sabia, é
que o à época major (ou tenente-coronel) Carlos Alberto Brilhante Ustra, que na
década anterior comandara o DOI-CODI do II Exército, teria sido um de seus
mentores, ao lado dos oficiais Perdigão e Vieira (p. 164). “Ustra, muito
respeitado entre nós, veio de Brasília para acompanhar o atentado”, relembra o
ex-delegado (p. 169). Até então, o que se sabia sobre esse militar, único
declarado torturador em sentença judicial até agora, era seu envolvimento em
diversos casos de tortura e morte de presos políticos. Obviamente, se
confirmada, a participação do hoje coronel da reserva no planejamento de um
atentado da magnitude do que se tentou no Riocentro em 1981 complicaria
enormemente a sua situação na justiça.
No livro, Ustra também é apontado como um dos autores
intelectuais da morte do delegado Sérgio Paranhos Fleury, notório assassino de
presos comuns e presos políticos (p. 100). Contudo, a versão apresentada por
Guerra para a morte de Fleury, como resultante de uma operação organizada pela
própria “comunidade de informações”, carece de maior consistência e foi
contestada pelo jornalista Percival de Souza, autor da biografia do famigerado
torturador (Autópsia do Medo).
Há muitos outros pontos do depoimento de Cláudio Guerra que,
por sua relevância, merecem ser tratados em outro texto: é o caso do
envolvimento de artistas e jornalistas com o time de torturadores e assassinos
do qual fazia parte o ex-delegado do DOPS-ES. O livro tem problemas, é possível
que algumas de suas afirmações sejam incorretas ou inverídicas, mas é inegável
que ele joga luz sobre episódios da Ditadura Militar que não podem ser
esquecidos.
Pedro Pomar é jornalista, editor da Revista Adusp e doutor
em ciências da comunicação.
Fonte: O escrevinhador
página do livro na internet: http://memoriasdeumaguerrasuja.com.br/
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