O
vale-tudo na busca por audiência
Valério
Cruz Brittos e Luciano Gallas, Observatório da Imprensa
A regulamentação da operação
televisiva não é, em si mesma, garantia de veiculação de uma
programação de qualidade na televisão, mas é a certeza da
existência de parâmetros a balizar a atuação das emissoras. A
construção de uma comunicação voltada à cidadania requer a
construção de um marco regulatório sincronizado com os princípios
democráticos, o que abrange o respeito à dignidade humana. É a
regulamentação, portanto, uma ferramenta imprescindível,
associando o direito de uso da concessão ao cumprimento de um
contrato, o qual deve estabelecer regras claras, inclusive para a
função de programação.
Ante a liberdade de empresa que
prevalece no Brasil, no dia 30 de setembro último o estado da
Paraíba foi vítima da permissividade com que as emissoras de TV
operam no país, expondo a intimidade de uma menina de 13 anos,
vítima de violência sexual. Pois uma emissora fez o inimaginável:
veiculou cenas do estupro de uma menina, que havia sido dopada,
gravadas por um dos dois acusados do crime, em plena programação do
horário do almoço. Ao longo do programa policial foram exibidas
chamadas, com pequenos trechos do vídeo, prova de um crime, como
forma de atrair e segurar a audiência até o final da atração.
A transmissão das imagens pela
emissora ocorreu 10 dias após o crime. Nesse intervalo, o vídeo,
gravado em um celular, vinha sendo repassado entre os alunos da
escola onde a menina estudava. Ou seja, a emissora de televisão
ampliou a exposição da vítima, que naquela altura já estava
plenamente identificada na comunidade em que estuda. Isso num
horário, do meio-dia, em que a programação televisual deve ser
livre para todos os públicos e idades. Nota-se aqui como o negócio
privado prevalece sobre o interesse social, mesmo que isso envolva o
uso de um bem público (o espectro radioelétrico, escasso por
excelência).
A ação do Ministério Público
No Brasil, as emissoras de TV aberta
dispõem da classificação etária prévia para cada horário, a
qual indica o tipo de programação que poderia ser veiculado em cada
momento do dia. O episódio demonstra a fragilidade do sistema de
classificação por idade, já que funciona na base da orientação
às emissoras, e seu descumprimento gera uma série de negociações
entre o poder público e a radiodifusora, com o agravante de que o
poder de sanção do primeiro é frágil.
Além do mais, o Ministério
da Justiça, responsável pela classificação etária, não tem
qualquer relação com as concessões de canais de rádio e de
televisão, cujos processos são de competência do Ministério das
Comunicações, diluindo a autoridade do poder público.
A divulgação de imagens de vítimas
em situações que possam ferir sua dignidade e coloquem em risco sua
integridade física ou psicológica, ainda que com truques de edição,
também é vedada pelo Código de Ética dos Jornalistas. Não
obstante, como não há regulamentação da profissão, não há
previsão legal de atuação de órgão responsável pela
fiscalização do exercício da atividade. Assim, a sanção máxima
prevista é a desfiliação do jornalista do sindicato que o
representa, situação inócua, por não ser mais exigida a formação
(muito menos a filiação no órgão de classe) para o desempenho
profissional.
O Ministério Público Federal (MPF) na
Paraíba baseou-se no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)
para ingressar com ação civil pública contra a TV Correio,
afiliada da Rede Record; o apresentador do programa Correio Verdade,
que exibiu as cenas do estupro; e a União, porque toda emissora
opera mediante concessão pública. A ação pede a suspensão do
programa, a cassação da concessão da TV Correio e o pagamento de
uma indenização de R$ 500 mil à vítima (pelo uso indevido de sua
imagem, violação de sua privacidade e danos morais), além de uma
multa de R$ 5 milhões por prejuízos morais à coletividade.
A regulação das emissoras de
comunicação
O artigo 18 do ECA estabelece que todos
devem “velar pela dignidade da criança e do adolescente”,
salvaguardando-os de “tratamento desumano, violento, aterrorizante,
vexatório ou constrangedor”; enquanto o artigo 76 afirma que, “no
horário recomendado para o público infanto-juvenil”, devem ser
exibidos pelos canais de rádio e TV somente “programas com
finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas”. Já
o artigo 17 do Estatuto diz que o “direito ao respeito consiste na
inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança
e do adolescente”, o que inclui a preservação da imagem, dentre
outros aspectos.
O Estatuto da Criança e do Adolescente
estabelece a proteção deste público em termos gerais; seu texto
não avança nas medidas a serem adotadas para preservar sua
privacidade e nas consequências a serem impostas às emissoras de
comunicação que infringirem a lei. Isso caberia à defasada e
omissa legislação regulatória da radiodifusão. Enquanto isso,
recentemente, uma grande rede de televisão dos Estados Unidos foi
multada de forma pesada pela agência reguladora de lá porque uma
cantora mostrou (inadvertidamente) um dos seios durante transmissão
de show na decisão do campeonato nacional de futebol americano.
O show de horrores a que estão
submetidos os telespectadores brasileiros e os casos de desrespeito e
preconceito com motivação na etnia, gênero, idade, orientação
sexual e opção religiosa acumulam-se diariamente na televisão.
Infelizmente, a TV Correio não é um caso isolado no espectro
radioelétrico brasileiro. Está mais do que na hora do país assumir
a necessidade do debate em torno da regulação das emissoras de
comunicação, construindo uma opção regulamentar. Do contrário,
continuará o vale-tudo em busca da audiência respaldado em um
discurso de liberdade de manifestação, que, como é sabido, só
vale para a empresa.
http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/_o_vale_tudo_na_busca_por_audiencia
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