Quem são os
herdeiros de 1922?
Por Augusto C. Buonicore
Devo dizer que me espantei com uma Nota Política do PCB de 25
de outubro de 2011. A própria linguagem a desqualifica, mas é seu conteúdo que
choca pela agressão que realiza contra a honra e a memória de parte importante
do movimento comunista brasileiro e, ainda, por se prestar ao papel de linha
auxiliar da reação que há uma quinzena realiza uma verdadeira caçada reacionária
ao Partido Comunista do Brasil, PCdoB. Esta “Nota”, por sinal, não tem a cara
de alguns de seus valorosos militantes, que conheço e respeito.
O referido texto começa com um parágrafo lapidar: “Se nosso
Partido fosse legalista, poderíamos reclamar no Procon, no TSE, na justiça
comum, contra a tentativa de sequestro da história do PCB: propaganda enganosa,
falsidade ideológica, estelionato político, apropriação indébita”. Assinalamos
que o texto já começa com um linguajar de “briga de salão”, que não é adequado
a uma discussão teórica e política séria. O fundo da questão é que o atual PCB
se considera o verdadeiro e único Partido Comunista do Brasil, fundado em 25 de
março de 1922. Assim, ninguém mais poderia reivindicar esta herança. A pena
para tal crime seria o achincalhe público e a desqualificação moral. Tese e
prática com a qual não concordamos.
O alvo central das críticas – e da pretensão – dos neopecebistas
é o PC do Brasil (PCdoB). Afirmam: “Todas as pessoas razoavelmente informadas,
todos os intelectuais, historiadores, militantes políticos e sociais sabem que
o PCdoB foi fundado em 1962, por uma insignificante minoria do Comitê Central
do PCB, após ser fragorosamente derrotada no V Congresso do nosso Partido”.
De fato, grande parte das pessoas acredita que o PCdoB foi
fundado em 1962. Contudo, também, não deixa de ser verdade que as “pessoas
razoavelmente informadas”, tem a convicção de que o atual PCB foi fundado em
1992, depois que uma “insignificante minoria” – ainda menor do que aquela que
“reorganizou” o PCdoB – foi sucessivamente derrotada nos últimos congressos do
antigo PCB. Todos sabem que, para o bem ou para o mal, não existe nada mais
diferente do velho PCB que o atual PCB.
Pergunto: se o PCdoB foi criado em 1962 e o atual PCB o foi
em 1992, qual, então, seria o legítimo herdeiro de 1922? Os “especialistas”,
talvez, respondesse “ninguém” e iria rir gostosamente desta discussão um tanto
bizantina.
Estranhamente tentando reconstruir a história do seu ponto de
vista, o neoPCB acabou distorcendo-a, ajudando a aumentar a confusão que ele se
propõe esclarecer. A nota diz que apenas recentemente PCdoB se arvorou como
herdeiro do antigo PCB. “Esta tática – de renegar hoje sua própria trajetória
para tentar se apropriar da história que rejeitaram em 1962 – vem sendo
aplicada em razão de uma realidade que os dirigentes desse partido nunca
imaginaram possível: a reconstrução revolucionária do PCB”. Por isso, “precisam
fingir que são o PCB, fundado em 1922, confundindo a opinião pública”. E
conclui: “Se o verdadeiro comunista João Amazonas estivesse vivo ficaria
envergonhado de assistir à manipulação de sua própria história”.
Todas as pessoas “razoavelmente informadas” sabem que essas
afirmações não são verdadeiras, parecem saídas de alguém que não conhece
minimamente a história do PCdoB e do próprio PCB. Leigos na rica história da
esquerda brasileira.
Quando o Partido Comunista do Brasil (PCdoB) começou a se
reivindicar herdeiro de 1922? Será que foi durante o governo Lula ou devido à
autointitulada “reconstrução revolucionária” do neoPCB, como afirmam? É obvio
que não. Este debate surgiu logo no início da década de 1960 e foi uma das
razões centrais para o racha dos comunistas brasileiros. Vamos aos fatos:
Quando em agosto de 1961, a direção do P C do Brasil (então
PCB) decidiu apresentar um novo Estatuto e Programa ao Tribunal Superior
Eleitoral, mudando o nome da organização para Partido Comunista Brasileiro e
tirando as referências ao internacionalismo e ao comunismo, um grupo de
expressivos militantes protestou e, numa carta, exigiu a convocação de um novo
congresso para deliberar sobre aquelas mudanças. Ao serem expulsos, convocaram
o que chamaram de V Conferência Nacional extraordinária com o objetivo de reorganizar
o antigo Partido Comunista do Brasil, mantendo o nome e o Estatuto.
Os delegados reunidos ali reivindicaram para si – e para o
Partido Comunista do Brasil reorganizado – a continuidade do antigo Partido e
não o rejeitaram como diz o texto desinformado do atual PCB. Foi exatamente
neste momento que o nosso país passou a ter dois partidos comunistas,
reivindicando o mesmo passado, a mesma herança.
Só este estupendo desconhecimento da nossa história comum,
beirando mesmo à má-fé, justificaria a afirmação que o verdadeiro comunista
João Amazonas ficaria chocado se soubesse que o PCdoB estava reivindicando a
história do PCB, antes de 1962. Existem dezenas de artigos nos quais Amazonas
reivindica essa continuidade histórica, destaco apenas o documento 50 anos de
Luta (1972) (e não dez anos), escrito em plena selva do Araguaia, em parceria
com outro grande comunista, Maurício Grabois. Se estavam errados é outro
problema, mas ninguém pode tirar-lhes o sagrado direito de reivindicar a
herança, especialmente os neopecebistas.
Atualmente, seria perfeitamente defensável afirmarmos que a
frondosa árvore nascida em 25 de março de 1922 deu vários galhos e frutos – uns
morreram pelo caminho, outros cresceram e se desenvolveram, e um deles pelo
menos, o PCdoB, se transformou num partido comunista que não para de crescer,
com uma massa de militantes e com influência política e social. Um partido
revolucionário e contemporâneo, fiel a sua identidade e aos seus princípios.
Outros não tiveram a mesma sorte. Entre os galhos e frutos desta árvore estão
Luís Carlos Prestes, João Amazonas, Carlos Marighella, Mário Alves, Maurício
Grabois, Mário Alves, Pedro Pomar, Joaquim Câmara Ferreira, Gregório Bezerra,
David Capistrano, Nestor Veras etc. Uma lista infindável.
Penso que, aos poucos, vamos superando a falsa ideia de que
só poderia haver um único partido comunista em cada país. O restante, portanto,
seriam necessariamente forças políticas pequeno-burguesas ou burguesas,
adversários (ou inimigos) a serem derrotados. Tese que levava a um eterno
processo de exclusões e anátemas, que prejudicavam a unidade das forças mais
avançadas da sociedade. Ressuscitar este velho espírito em pleno século XXI é
prestar um grande desserviço à causa dos trabalhadores e do socialismo.
Calúnias sob o manto de debate programático
Para o neoPCB um partido só é verdadeiramente comunista se
não participar de governos, não tiver expressão política de massas e for uma
organização exclusivamente de quadros, preferencialmente uma seita de puros.
Nada mais avesso às concepções marxistas e leninistas de partido. Transportam
modelos de partidos feitos para atuar na clandestinidade para momentos
históricos marcados pela existência de uma democracia ampliada, ainda que
burguesa.
O atual PCB entra inclusive no mérito do programa de TV do PC
do B. Critica-o por exibir “um programa eleitoral voltado para as eleições de
2012!”. Continua a acusação: “com efeitos especiais, exibiram cinco atuais
parlamentares que já estão em campanha para prefeituras, uma manobra comum a
todos os partidos eleitoreiros”. Assim, continua ele, “ganham de qualquer
forma. Vencendo as eleições, se tornam prefeitos. Se as perdem, antecipam em
dois anos a campanha para sua reeleição ao parlamento”.
Para os neocomunistas passou a ser crime projetar lideranças,
através do seu espaço na TV, um ano antes da campanha eleitoral. Pela nova
cartilha estaria proibido aos deputados e senadores comunistas se lançarem
candidatos às prefeituras de suas cidades e, especialmente, conseguirem ser
eleitos. Os políticos de direita, que se utilizam diariamente da grande mídia,
gostariam que a esquerda seguisse estes conselhos extremamente revolucionários.
Somente uma seita sectária – sem nenhuma expressão política e social – seria
capaz de propor algo deste tipo.
Continua a crítica dos neocomunistas: “Em 10 minutos de
programa, não houve menção alguma ao imperialismo e ao capitalismo. Parece que,
para esse partido, nem o imperialismo está inventando guerras contra os povos
nem os trabalhadores do mundo estão lutando contra as retiradas de seus
direitos, em meio à crise sistêmica do capitalismo”. Eles reduzem seu campo de
visão aos 10 míseros minutos do programa de TV, no qual o PCdoB teve que,
excepcionalmente, passar a maior parte do tempo se defendendo de ataques da
direita.
Parece que eles não viram nenhum dos programas anteriores,
não leram a imprensa do PCdoB, as resoluções de seus congressos ou seu programa
socialista. Não acompanharam – nem acompanham – as lutas travadas pelas
entidades nas quais os comunistas (do B) têm alguma influência. Se tivessem
feito isso, teriam uma visão muito diferente e mais próxima da realidade. Não é
sem motivo que é uma dirigente do PCdoB, Socorro Gomes, a atual presidente do
Conselho Mundial da Paz e a primeira reunião dos Partidos Comunistas em nosso
continente tenha sido no Brasil, tendo o PCdoB como anfitrião. Sinal de
reconhecimento do seu papel na luta anti-imperialista por parte dos demais
partidos operários e comunistas. Isso não é pouco.
Por fim, cabe nos referir à parte mais deplorável do
documento – engrossando o coro da mídia burguesa contra o PCdoB. Afinal, esta
tem sido a prática histórica de certas correntes esquerdistas no Brasil e no
mundo. O texto começa de uma maneira um tanto malandra: “Aliás, por falar em dinheiro
público, o PCB, na crítica política e ideológica que faz ao PCdoB, não centrará
suas divergências nas recentes denúncias contra o Ministro dos Esportes.
Ficamos com o benefício da dúvida, aguardando os desdobramentos do caso e a
apuração das denúncias”.
Passa então a descrever detalhadamente as acusações contra o
referido ministério, todas plantadas pela mídia conservadora, e chega mesmo a
supor que estas denúncias seriam “a principal motivação da candidatura do
deputado Aldo Rabelo a Ministro do TCU”. E, contrariando o nobre direito da
dúvida, anunciado anteriormente, afirmou, sentenciando: “Independente dos
resultados da apuração das denúncias (sic), um fato já é cristalino: integrado
ao sistema, o PCdoB, durante os nove anos em que dirige o Ministério dos
Esportes e outros espaços de poder, se enredou na promiscuidade com esquemas,
públicos e privados, e com delinquentes”. Fala, inclusive, que o PCdoB teria
“voracidade por recursos não contabilizados”. Conclui, sem medo do ridículo:
“Mas, como dissemos, nossa discussão é no campo político, na tática e na
estratégia que devem adotar os que se reivindicam comunistas”. Aqui, num passe
de mágica, calúnia sem prova virou crítica política e ideológica. Para o atual
PCB o fato já é cristalino, não precisa de apuração, que passa ser uma
formalidade jurídica. Os “neocomunistas” adotam as calúnias da revista Veja, e
com base nelas fazem coro com o campo político mais reacionário do país.
Concluo com uma frase lapidar daquele documento que se diz
comunista: “só é abatido na luta pelo poder no Estado burguês quem tem telhado
de vidro”. Que o digam os parlamentares comunistas cassados em 1948, Jango e
Allende, abatidos por um golpe militar. Apesar do desejo da direita e dos
setores a ela aliados, o PCdoB não foi e nem será abatido tão facilmente, pois
além de não ter telhado de vidro, possui história, grandes amigos e uma
militância aguerrida que o fez transpor situações muito mais difíceis.
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Historiador e secretário-geral da Fundação Maurício Grabois
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