domingo, 6 de dezembro de 2009

Emocionante! Uma carta aos pais escrita do cárcere



Pelo preso político Miguel Ángel Beltrán, 14/11/2009



Carta a meus pais: Miguel Antonio Beltrán e Alba Ruth Villegas

Queridos pais

Imagino suas caras de surpresa quando na sexta-feira passada (22 de maio) escutaram o comandante de polícia, General Oscar Naranjo, dizer que o Departamento Administrativo de Segurança (DAS) havia capturado “o terrorista mais perigoso das FARCs” e que se tratava de um professor universitário que respondia - igual ao vosso filho - pelo nome de Miguel Angel Beltrán Villegas.

Suponho que, a não ser pelas inquietantes imagens da televisão que corroboraram a notícia, onde me apresentava algemado com jaleco antibalas de cor preta, uma mordaça e um impressionante dispositivo de segurança, papai teria dado uma descomunal gargalhada, comentando a notícia com seu costumeiro humor negro: “se meu filho é terrorista, Uribe é a Virgem Santíssima”.

Mas neste país do Sagrado Coração de Jesus, onde os mal chamados “falsos positivos” (em realidade verdadeiros crimes de Estado) executados a “sangue frio” são o pão de cada dia, tudo é possível. Inclusive que os noticiários citem ao presidente Álvaro Uribe como o mandatário mais popular da América Latina e a mim como um perigoso terrorista internacional.

No dia seguinte, nos calabouços da SIJIN[1]  de Bogotá, um guarda compartilhou comigo um artigo publicado pelo diário “El Tiempo” e que parecia um panfleto escrito nos tempos da Guerra Fria quando se dizia que “os comunistas comiam criancinhas”. Na sua coluna, o jornalista afirmava que vocês dois eram guerrilheiros e que eu havia realizado meus estudos na extinta União Soviética. Desta vez - lhes confesso – quem não pode segurar o riso fui eu: “meus pais “chusmeros”[2], vejam que piada divertida”, imaginava em meio à hilaridade que me produzia a notícia que, se eu era acusado de ter o codinome Cienfuegos, seguramente papai foi conhecido como faísca e mamãe como pólvora ou outro explosivo nome de guerra.

Mais do que irresponsável a afirmação do jornalista, colocou em grave risco a integridade física de vocês dado que neste país os ex-guerrilheiros tem sido impunemente assassinados, como pode ilustrar a morte de Guadalupe Salcedo, “Charro Negro”, Carlos Toledo Plata, Carlos Pizarro e muitos mais. Quisera dizer-lhes que secretamente pensei que era um orgulho que no citado artigo de imprensa os chamavam de guerrilheiros. Acaso não foram os exércitos irregulares patriotas os que derrotaram mais de três séculos de colonialismo espanhol? Não foram os guerrilheiros liberais os que enfrentaram as ditaduras civis conservadoras nos anos quarenta e cinqüenta? Não é a ação guerrilheira que tem preservado os escassos resquícios de democracia que hoje subsistem neste país?

Na Colômbia a história tem demonstrado que guerrilheiro é sinônimo de altruísmo, resistência e dignidade; Os LLanos (as Planícies), Chaparral, Villarrica, Marquetalia, Sumapaz e o Guayabero podem dar fé disso. Insultante teria sido se os chamassem “congressistas” ou “assessores presidenciais”, ocupação associada hoje à corrupção, ao Narcotráfico e ao paramilitarismo.

Mas a vida lhes reservou outros caminhos: papai se converteu em um ex-sargento vice- primeiro da policia e minha progenitora em uma abnegada mãe dedicada aos cuidados do lar. Com a generosidade e a entrega de vocês dois, sobrevivendo de uma precária pensão de policia habitando uma casa em “obra negra”, que lhes subsidiou o programa da “Aliança para o Progresso” (e que terminaram de levantar ladrilho a ladrilho), conseguiram criar, educar e alimentar sete filhos: cinco mulheres e dois homens. De modo que se alguma profissão exerceram vocês – há que aclarar ao jornalista – não foi a de guerrilheiro, mas a de magos e ilusionistas.

Hoje confinado neste presídio de alta segurança onde as horas transcorrem lenta e monotonamente, é inevitável recriar em minha mente essas histórias familiares que agora se acumulam em minha garganta como um grito de rebeldia contra toda a injustiça que pesa sobre mim este regime corrupto e narcoparamilitar. Ainda tenho fresco em minha memória aquele longínquo dia, quando a avó Sofia me relatou, sem derramar sequer uma lágrima, porque seus olhos estavam secos de sofrimento, a morte de Victor Villegas, meu avô materno, que era dono de uma extensa fazenda cafeteira no velho Caldas. Uma tarde qualquer – me contou vovó – sua vida foi ceifada a machadadas, pelo delito de ser “cachiporro”[3].

Seu corpo inerte permaneceu estendido por várias horas na praça do povo. Ninguém se atrevia a recolher-lo por medo de represálias, mas minha avó que sempre se distinguiu por ter um caráter forte, fazendo pouco caso dos apelos de amigos e vizinhos dirigiu-se à praça do povo, recolheu o cadáver, o carregou vários quilômetros e, em cerimônia quase privada, lhe deu sepultura cristã.

Antes que concluísse o relato meus olhos estavam marejados de lágrimas, por isso talvez a avó que conhecia minha sensibilidade nunca me contou que, no momento de enterrar seu defunto esposo, em seu ventre uma pequena de apenas oito meses de existência agitava sua cabecinha, como perguntando por que lhe privavam de ter um pai que lhe arrulhasse no pescoço, lhe beijasse na testa antes de dormir e a levasse ao parque.

Minha tia Yormen – como depois batizaram esta menina – cresceu assim como tem crescido milhares de colombianos, isto é, como filhos do conflito armado e social que tem castigado o país por décadas.

Foi assim como minha imaginação infantil começou a povoar-se com as histórias “da violência” que saiam a reluzir, cada vez que chegava uma visita familiar. Recordo que - como éramos crianças - nos mandavam dormir porque se tratava de “conversa para adultos”.

Mas minha curiosidade era maior e, contrariando as ordens paternas, escutei atrás das escadas que conduziam ao segundo piso de nossa casa, algumas palavras que muito depois fariam sentido para mim: “godos”[4], “cachiporros”, “pájaros”[5], “chusmeros”, “chulavitas”[6], “Gaitán”[7], “sangrenegra”[8], “vingança”, laureanistas”[9] e outros mais.

Muito cedo os relatos de fadas encantadas e de príncipes valentes, que com seus beijos desfaziam os malefícios da bruxa malvada, foram substituídos pelos terroríficos contos da polícia “chuvalita” que incursionava pelos povos liberais e cortava o pênis dos homens e o colocavam na boca de suas vítimas, pelos relatos fantásticos de homens de filiação liberal que eram obrigados a caminhar descalços sobre brasas ardentes e, ainda, extraíam os fetos das mulheres grávidas e os enfiavam em suas baionetas, exibindo com orgulho o apreciado troféu.

Escutava estas histórias com uma mescla de terror e fascinação e, como era de se esperar, ao longo da noite era impossível conciliar o sono. Então corria para minha irmã mais velha, que me aninhava em seus braços e, acariciando-me a cabeça, me dizia com sua voz doce para dormir, que essas histórias haviam acontecido há muito tempo na época da violência, mas que agora era tudo diferente; “godos” e “cachiporros” conviviam juntos e já não se matavam.

Ao escutar estas palavras uma sensação de segurança invadia todo meu corpo e fechava os olhos agradecido com a vida por não ter padecido o horror daqueles anos. E assim como minhas leituras infantis minhas simpatias se alinhavam com os mais débeis (chapeuzinho vermelho, Branca de neve, e Cinderela) e meus ódios com os mais cruéis (o lobo, a bruxa e a madrasta) nos relatos que escutava de vocês não me foi difícil tomar partido a favor dos “cachiporros”.

É certo que com meus escassos cinco anos não entendia o que significava esta palavra, mas no mais profundo de meu coração algo me indicava que eles eram bons e os “godos” maus. Na minha lógica infantil teve, no entanto, algo que começou a inquietar-me constantemente: os “chuvalitas” eram policiais e estes por sua vez eram “godos”, mas – veja que horror! – meu pai era policia.

A preocupação rondava tanto minha cabeça que um dia me enchi de coragem e cerrando os olhos me atrevi a perguntar: “papai, quantos cachiporros você matou?” Eu esperava um severo castigo por meu atrevimento, mas como resposta obtive uma sonora gargalhada. Em minha mente infantil essa risada significava que havia assassinado e esquartejado milhares de liberais. Então minha cara ficou séria e um calafrio percorreu o meu corpo. Ante a certeza de algo que já suspeitava, a imagem de um pai exemplar, do pai carinhoso, do pai bom desfazia-se em mil pedaços, como um cristal ao espatifar-se no piso.

Quando estava a ponto de desatar um soluço papai respondeu que em toda a sua vida não havia matado ninguém. E em seguida me esclareceu já com gesto sério – enquanto meu coração voltava ao corpo – em que pese ser um policial nunca deixou de ser um liberal gaitanista. E que sempre ocultou essa filiação política não só para proteger sua vida como também a de dezenas de famílias perseguidas pela violência conservadora; também para burlar ordens que não considerava corretas e procurar justiça onde a situação o requere.

A partir desse dia, tudo parecia mais compreensível e o enredo de idéias que tinha em minha cabeça começou a clarear-se. Por exemplo, compreendi porque mamãe sendo liberal se havia casado com um policial. Assim mesmo entendi a diferença entre um “pássaro” e um “guerrilheiro”. Soube também desde aquela vez que nas fileiras da polícia havia gente boa. E anos depois convertido em ativista estudantil rechacei aquela consigna dogmática tão em voga entre os universitários, que considerava que todos os militares eram assassinos.

Não obstante, a melhor lição que me trouxeram estas conversações com vocês e que se fizeram cada vez mais freqüentes foi que, independentemente de onde estivesse, devia sempre tomar partido a favor dos fracos e manifestar minha indignação contra toda injustiça.

Foi nesses primeiros anos de minha vida que comecei a interessar-me pela história política do País e aquela velha biblioteca de madeira, que ainda sobrevive na casa abriu-se para mim como se fosse um tesouro escondido: ”Viento seco” de Daniel Caicedo; “O que o céu não perdoa” de Fidel Blandón; “Um aspecto da Violência” cujo autor já não recordo, forma obras que devorei em questão de dias.

No entanto, o livro que mais me impactou foi o “Las guerrillas Del Llano”[10]. Seu autor, Franco Isaza, havia participado na contenda. Recordo-me que na biblioteca papai tinha a primeira edição impressa em Caracas, Venezuela, e que circulou clandestinamente sob a ditadura do general Rojas Pinilla, com um prólogo de Plínio Apuleyo Mendonza onde exaltava “a heróica resistência guerrilheira do partido liberal”.

Tinha sete ou oito anos quando li avidamente em uma dessas férias escolares. Com grande crueza Isaza retratava ali sangrentos massacres cometidos pelos chuvalitas nos povoados de El Llano, mas ao mesmo tempo explicava como os leões llaneiros foram se armando para defender suas vidas e propriedades, primeiro em aliança com os fazendeiros liberais e depois contra eles, que se puseram ao lado dos conservadores.

Nas diferentes conversas com meu companheiro de cela Heli Mejia, mais conhecido como “Martin Sombra” recriei estas histórias. Sombra me conta como sua mãe e suas tias foram violadas e assassinadas pela polícia chuvalita; e como seu pai, pouco depois teve a mesma sorte:

“Ante o corpo agonizante de meu pai, jurei que morreria como um guerrilheiro, por isso jamais me esqueci e em 1966 me vinculei aos núcleos iniciais das FARCs”.

Sombra é um vivo exemplo da continuidade – e por sua vez a descontinuidade – da luta guerrilheira na Colômbia. Um conflito que começou como um enfrentamento entre liberais e conservadores, mas que nos anos sessenta adquiriu claro conteúdo de classe, como ficou consignado no “programa agrário dos guerrilheiros” (FARC) e o Manifesto de Simacota (ELN).

Faz mais de um quarto de século que em minha teses de licenciatura em Ciências sociais comecei a investiga este passado histórico, porque acreditei ver nele algumas chaves para compreender a atualidade do conflito armado na Colômbia. Foi assim que me interessei por estudar as guerrilhas liberais do Llano.

Eram os tempos do processo de paz do presidente Belisário Betancur e, de diferentes setores do estado se pressionava para que os combatentes se desmobilizassem e entregassem suas armas. A investigação que realizamos em co-autoria com um companheiro de estúdio, filho de um exguerrilheiro liberal; levou-nos a concluir que os guerrilheiros do Llano haviam sido traídos pelo general Rojas Pinilla que solicitou aos rebeldes que entregassem suas armas em troca de promessas de paz que nunca cumpriu, ao contrário muitos foram presos e assassinados.

Por isso na introdução do nosso trabalho investigativo assinalamos que a derrota do movimento guerrilheiro convertia-se em vitória, porque jamais se voltaria a ver fileiras de insurgentes entregando suas armas a seus verdugos.

A história, no entanto, se encarregaria de desmentir parcialmente aquela afirmação. Anos depois, os guerrilheiros do M-19 desconsiderando esta lição histórica, entregaram suas armas e muitos deles forma assassinados começando pelo seu chefe máximo, o comandante Carlos Pizarro Leon Gomez mesmo contando com uma escolta de mais de 20 homens.

Diferente foi a sorte dos combatentes das FARCs que se esquivaram do processo de “cessar fogo trégua e paz” e se negaram a entregar as armas e anunciaram ao país a formação de um novo movimento político, a União Patriótica (UP). Me vinculei às fileiras da União Patriótica desde o início, porque vi nesse movimento amplo a possibilidade de uma mudança democrática pela via pacífica. Suas propostas de reforma política, agrária e social chamaram minha atenção, assim como seu compromisso com a busca de uma saída política ao conflito colombiano.

A candidatura do magistrado Jaime Pardo Leal satisfez todas as minhas expectativas: seu discurso inflamado, sua tradição de luta, sua capacidade intelectual e sua formação acadêmica me convenceram de participar, pela primeira vez, em uma contenda eleitoral. Mas a oligarquia deste país ao ver ameaçados seus mesquinhos interesses, exterminou a sangue e fogo este experimento político.

De pronto comecei a sentir com horror que essas histórias da violência que vocês relatavam em meus anos de infância não eram coisas do passado, sim do presente: corpos cortados com motosserra ou lançados como alimento a crocodilos, assassinos que jogavam futebol com a cabeça de suas vítimas, homens, mulheres e crianças esquartejados, populações inteiras arrasadas, marchas campesinas esmagadas indiscriminadamente;

Sindicalistas, estudantes e líderes populares desaparecidos, guerrilheiros desarmados assassinados impunemente e centenas de fossas comuns distribuídas por todo o território colombiano. Assim vi desvanecer-se o Partido da “vida e da esperança” para converter-se no “Partido da Morte”: senadores e candidatos à câmara, conselhos, prefeituras populares e militantes de base da UP foram exterminados barbaramente.

Tenho em minha mente gravados os nomes de Leonardo Posada, Pedro Nel Jimenez, Teófilo Forero, José Antequera, Pedro Luis Valencia, Bernardo Jaramillo, Miller Chacón, Manuel Cepeda e milhares de companheiros mais que despareceram sob este furacão de mortes pelas altas esferas do poder.

No entanto, ninguém como a família Canón Trujillo encarnou tão tragicamente o drama da guerra suja, o desaparecimento forçado, a tortura e o isolamento que padecemos os militantes da União Patriótica naqueles anos: o pai, Julio Canón, prefeito popular desta coletividade política no município de Vistahermosa, foi assassinado; dois de seus filhos trucidados (um deles apresentado como guerrilheiro morto em combate); o terceiro irmão desaparecido e outro mais torturado; enquanto os sobreviventes – entre eles Carmen Trujillo, a mãe cabeça da família – se viram forçados a abandonar a região.

O ciclo de extermínio contra a União Patriótica alcançou para mim seu ponto máximo, quando um domingo 11 de outubro, perto de 4h da tarde, faz já 22 anos, escutei pelo rádio a terrível notícia do assassinato de meu mestre, amigo e companheiro de luta Jaime Pardo Leal, então candidato presidencial desta organização política. Aquele dia não pude conter minha indignação e, como milhares de compatriotas, saí às ruas de Bogotá a manifestar meu espontâneo protesto pelo traiçoeiro assassinato do nosso líder popular que um mês antes havia denunciado com nomes próprios aos altos escalões militares comprometidos com os crimes da União Patriótica.

As barricadas nas ruas centrais da capital, o apedrejamento das entidades financeiras, a queima de ônibus e o saque de armazéns me lembraram, inevitavelmente as cenas de 9 de abril de 1948, que vocês haviam vivido e que tantas vezes repassei em minhas leituras universitárias. Para minha desgraça, essa noite terminei encerrado em um frio e escuro porão da estação de polícia do Ricaurte, onde fui torturado – e estive a ponto de ser desaparecido – por conta de um corpulento homem a quem, soube depois, seus companheiros chamavam de “Rambo”, aludindo à rudeza do protagonista desta fita gringa.

Por um feliz equívoco do sentinela de turno, que me confundiu com outro dos detidos, obtive milagrosamente minha liberdade pela manhã do dia seguinte. Consciente da distração do guarda que seguramente iria ser castigado saí temeroso, com o temor de que dessem pelo erro antes de cruzar a porta que dava para a rua; minhas pernas apenas me respondiam e meu coração parecia explodir.

Nessas condições, ainda não entendo como cheguei até em casa, que se encontrava a uma hora do local onde estava preso. Lembro-me que vocês, junto com meus irmãos e irmãs, estavam reunidos na sala. Papai se achava com as orelhas pregadas no rádio, como que esperando algum boletim informativo que desse conta de meu paradeiro; enquanto minha mãe e minhas irmãs oravam em frente a um quadro do Coração de Jesus que sempre nos acompanhou.

Minha aparição na sala da casa foi como uma imagem de um Cristo recém ressuscitado entre os mortos, só que em lugar da túnica branca, vestia uma camisa e uma calça totalmente esfarrapados. Meu corpo estava machucado por toda parte, minha cabeça com hematomas, meus braços com profundas escoriações e meu olho esquerdo convertido em um gelatinoso coágulo de sangue. Dos abraços, as lágrimas e a alegria do reencontro, logo passou a raiva e a indignação pelo maltrato recebido. Nesse mesmo dia papai redigiu um memorial escrito à máquina e dirigido ao comandante da estação Ricaurte. Depois de identificar-se como suboficial das Forças Militares “em uso de licença” entregou o memorial a um major que tinha a cargo o Comando, não sem antes pronunciar-se em longo discurso, onde recordava que a função da polícia era defender a integridade da população civil e não atropelar-lhe; que em seus mais de vinte anos de serviço militar jamais havia atuado contra ela, em que pese haver vivido os duros anos da violência para concluir suas alegações dizendo: “agora sim entendo por que a guerrilha os mata!!”

Com meus irmãos e minha mãe pensamos que iam deixar papai ali e que terminaria tomando o meu lugar no calabouço, mas pelo contrário, o oficial de policia o escutou atentamente e, com seu silencio, pareceu dar-lhe toda razão. Quando papai regressou para casa – feliz pela catarse feita – todos soltamos a respiração que até então estava contida. Depois desse bárbaro episódio, estive vários dias morto de pânico, esperando que em uma esquina qualquer aparecesse “Rambo”, montado em sua moto e disposto a concluir sua bestial tarefa.

Por sorte, isto nunca aconteceu e, vencendo meus medos interiores, assisti ao enterro de Jaime Pardo Leal e de muitos companheiros mais. Sentíamos ali – como o famoso tango de Gardel – que “a vida era um sopro”. Assim, talvez sem darmos conta, aconteceu algo terrível, que jamais deveria acontecer: ante o efêmero da vida nos enamoramos da certeza da morte.

Ríamos, bailávamos, sonhávamos e nos acostumávamos com ela. Cada dia, cada minuto e cada segundo que vivíamos intensamente era um instante que furtávamos da morte. Não fazíamos juramentos de amor, não prometíamos estrelas azuis, mas estávamos dispostos a dar tudo, porque a vida não nos pertencia e em qualquer momento chegaria a morte assassina.

Começamos então a render um culto religioso a Thanathos. Nossos sonhos, nossas palavras, nossos silêncios, nossos versos e até nossas consignas estavam impregnadas de um hálito de morte: “os mortos não choram – costumávamos gritar nas marchas – levantam suas bandeiras e a luta continua”.

Entretanto, em segredo chorávamos suas ausências e lamentávamos a escura desgraça de estar sem eles. Um de nossos jogos prediletos era relatar qual seria nossa última vontade: “Eu desejo que meu cadáver seja incinerado e as cinzas sejam lançadas no rio Magdalena” – dizia alguém; “Eu prefiro que meu corpo seja sepultado embaixo da terra e sobre ele plantem uma árvore que cresça até o infinito” – intervinha outra voz; “meu desejo póstumo é que durante minhas honras fúnebres cantem a canção do eleito”, que iniciava assim:

“sempre que se faz uma história, se fala de um velho, de uma criança ou de si; mas minha história é diferente, não vou falar-lhes de um homem comum, farei a história de um ser de outro mundo, de um animal de galáxia;

É uma história que tem a ver com o curso da Via Láctea. É uma história enterrada, é sobre um ser do nada.(...)”

Sua letra me recordava uma de minhas leituras preferidas quando era pequeno:”El Principito”.

O culto à morte era acompanhado de um total cinismo para encarar a mesma:

“E o companheiro que medidas tomou para encarar a morte? – perguntava alguém ingenuamente – “A do ataúde, claro”, respondia o aludido, sarcasticamente.

Em outras ocasiões quando alguém comentava que um amigo nosso havia se convertido em um quadro nacional, não faltava quem dissesse com ironia: “Está certo, mas se descuidar-se, em pouco tempo se converterá em um quadro na parede”.

Não faltava razão porque as sedes da UP estavam cheias de quadros de dirigentes da UP que foram assassinados. Com o tempo estes quadros foram se multiplicando com a imagem horrorosa de centenas de amigos e amigas que nos deixaram e dos quais só ficou a lembrança na mente daqueles que compartimos seus ideais, suas lutas e batalhas, e que, apesar disso, sobrevivemos a essa barbárie.

Sim, eu fui um dos sobreviventes. Não explico como nem por que. “As almas penadas”, diria minha avó Sofia, as mesmas que a guardaram dos “godos” quando com oito meses de gravidez, carregou o corpo ensangüentado do esposo; as mesmas que em meio da “chulavitada” protegeram a vida de vocês, uns autênticos liberais; as mesmas que a escoltaram quando tiveram que abandonar a fazenda cafeteira e radicar-se em Bogotá para escapar do terror dos “pássaros”

Claro, também paguei meu preço, no entanto, nada comparável com a entrega da vida. Em várias ocasiões fui golpeado e torturado pela polícia e a última dessas vezes – faz mais de 20 anos – permaneci preso nesta mesma prisão durante dois longos meses, mas a verdade se impôs e o juiz declarou minha inocência.

Recordo que nessa oportunidade vários universitários foram golpeados e detidos comigo, e mamãe com lágrimas os olhos, ainda que com um pouco de alívio, me disse: “filho, graças a Deus que não fizeram a você como a esse pobre rapaz que arrastaram pelo solo, arrancando-lhe a pele, o subiram a uma camionete e lhe quebraram a cabeça com um cano.

Como haverá sofrido sua angustiada mãe! Eu apenas concordei balançando a cabeça machucada, mas jamais me atrevi a contar que “esse pobre rapaz era eu”. Porém toda experiência por mais difícil que seja sempre trás lições positivas e, para vocês, este doloroso episódio lhes deixou claro que já nesses anos, liberais e conservadores atuavam com a mesma intensidade contra a oposição. Ou acaso este genocídio e perseguição contra a União Patriótica não estava ocorrendo sob o regime “liberal” de Virgílio Barco que vocês haviam respaldado nas urnas? Com certa resignação tiveram que admitir que a polícia já não era, como no passado, um assunto entre “godos” e “cachiporros” – aliados pelo pacto da Frente Nacional – senão como certa vez assinalou Gaitán: “um enfrentamento do país Nacional contra as oligarquias plutocráticas incrustadas nos partidos tradicionais, porque a fome não liberal nem conservadora”.

Desde então, optaram por apoiar candidatos de esquerda. E dramaticamente a história parecia repetir-se. Assim como os gaitanistas que sobreviveram à violência dos anos 40, organizaram os primeiros núcleos de resistência armada para defender sua vida e a de seus familiares, muitos sobreviventes da União Patriótica não tiveram outra alternativa além de remontar-la.

Ricardo Palmera, hoje conhecido como Simón Trinidad, ilustra claramente esta parábola de vida, como registra o jornalista Jorge Enrique Botero em seu livro “Simón Trinidad, o Homem de Ferro”.

Apesar de nesse momento entender que a guerrilha constituía o único caminho que o sistema deixava para aqueles que mantinham seus ideais de luta por uma sociedade mais justa, nunca me atrevi a dar semelhante passo, ainda que sempre tenha visto com respeito e admiração aqueles que o fizeram.

Tres motivos tive para não fazê-lo: Em primeiro lugar, papai que toda vida portou uma pistola com salvo conduto, até que teve que empenhá-la para resolver uma crise econômica familiar, nos inculcou o respeito pelas armas – “oxalá nunca tenham que utilizar-las”, nos dizia frequentemente.

Coerente com este pensamento, uma noite em que surpreendeu dois homens roubando na sala de casa, papai fez um disparo para o alto, para dar-lhes tempo de escapar. Nós perguntamos por que não os havia ferido, se a lei o amparava. “Porque não era necessário, disseste, é possível que tenham sido vizinhos e seguramente tem filhos sob seus cuidados. Que não merecem ficar órfãos”.

Captei a mensagem imediatamente, a pesar de durante anos ter lamentado que tenham levado um volume de meu Manual de História da Colômbia.

Em segundo lugar, não tomei o caminho da luta armada, porque minha constituição física sempre foi frágil. Meus amigos diziam brincando que só me dava duas gripes por ano e que cada uma durava seis meses.

Por isso entendo sua preocupação quando nas imagens de minha prisão me apresentaram algemado e com um tapa-boca. Vocês como muitos devem ter pensado que como vinha do México portava o vírus AH1N1.

Se tivesse, teria morrido irremediavelmente porque as autoridades colombianas em seu afã de “legalizar minha captura” se negaram a fazer-me exame de laboratório (neste país é necessário ser Presidente ou Ministro para receber atenção médica imediata).

Em terceiro lugar, nunca pensei ser guerrilheiro porque desde menino minha paixão eram livros, não as armas. O dinheiro que recebia para o lanche e de meus tios eu juntava para investir tudo em livros.

Papai dizia que quando eu crescesse iria ser catedrático. Eu não sabia o que era isso, mas me entusiasmava a idéia de ganhar a vida sendo uma enciclopédia ambulante, como os “catedráticos” Abelardo Forero Benavides e Ramón de Zubiría; mãe em troca me olhava com admiração e estranheza: lhe preocupava que não saísse à rua para brincar com os outros meninos e que preferisse ficar no terraço lendo o dia todo.

Com o tempo as viagens, a experiência em outras cidades dentro e fora do país, e a condição de ser padre enriqueceram minhas leituras. Mas em meio a todas estas experiências, a caneta e o pensamento foram as únicas armas que aprendi a manejar.

Convertido em cientista social, e comprometido com a verdade, não deixei de utilizar estas armas para pensar a realidade deste país; para denunciar os crimes de Estado; para desnudar as alianças das elites governantes com o narcotráfico; para revelar a natureza “terrorista” do Estado que exterminou mais de cinco mil militantes da União Patriótica e a milhares de líderes da oposição.

Em uma palavra, para denunciar os horrores deste conflito armado e social que o presidente Uribe quer negar, através de sua mal chamada “Seguridade Democrática” qualificando de terrorista a resistência política e social do povo colombiano e a atividade de acadêmicos que queremos investigar esta realidade.

De José Martí aprendi que “trincheiras de idéias valem mais que trincheiras de pedras”, por isso meus únicos campos de batalha tem sido as aulas universitárias nas quais transcorreram dois terços de minha vida. Na Universidade Distrital e Nacional e não na União Soviética cursei simultaneamente meus estudos de graduação . Vocês sabem melhor que ninguém, pelo grande esforço econômico que realizaram para que eu pudesse manter esse privilégio.

Reunir o dinheiro para as passagens de ônibus; comprar as fotocópias (porque os livros era impossível) constituía uma luta do dia a dia, que pudemos driblar com êxito graças, também, à ajuda de minhas irmãs mais velhas, que diferentemente de mim, tiveram que trabalhar para pagar seus estudos profissionais.

Jamais estive na União Soviética nem como estudante nem como visitante e desafortunadamente já não poderei fazê-lo, porque a URSS desapareceu faz quase duas décadas. No entanto sempre mantive uma admiração profunda pela Revolução de Outubro, antes que as práticas estalinistas e burocráticas a pervertessem.

Mas minhas preocupações pela América latina me levaram ao México, onde pude cursar um mestrado graças a uma bolsa que me outorgou a Faculdade Latino Americana de Ciências Sociais (Flacso) depois de uma rigorosa seleção entre profissionais egressos das mais reconhecidas universidades do país.

Ao concluir estes estudos optei por seguir com um doutorado na Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM); nunca paguei um peso pelas taxas de inscrição, porque no México a educação pública é gratuita. Esse foi uma das grandes vitórias da revolução mexicana que no próximo ano comemora seu primeiro centenário.

Apesar destes benefícios foram tempos difíceis. Meu filho, Ernesto, era de colo, mas com sua mãe sobrevivíamos a peso de tortillas (comida popular centro-americana feita de miho verde) e dos escassos subsídios que o Estado mexicano ainda mantinha. Por isso, ainda que hoje o governo de Felipe Calderón (cuja eleição foi marcada pela fraude eleitoral) tenha traído, com minha deportação, uma longa tradição diplomática de independência e solidariedade com a luta dos povos latino americanos, mantenho o sentimento de gratidão para com meus irmãos mexicanos. Deles sempre recebi solidariedade e hospitalidade.

Na UNAM tive oportunidade não só de obter um doutorado – cuja tese recebeu menção honrosa – mas também de conhecer centenas de pesquisadores comprometidos com um projeto de sociedade mais justa e equitativa, e que enriqueceram minha perspectiva latino americana.

Alguns como René Zavaleta Mercado, Ruy Mauro Marini, Sergio Bagu e Augustin Cueva, já não estão conosco; outros seguem ativos e tem sido para mim um exemplo de militância com a verdade e o pensamento crítico.

Assim, quando o Centro de Estudos Latino Americanos (CELA), espaço de excelência de produção acadêmica crítica, me brindou a possibilidade de realizar um período posdoutoral, não duvidei em aceitar o convite e através da Universidade formei uma comissão de estudos.

Claro, também houve outros fatores que precipitaram minha decisão: há vários meses estava sendo vítima de perseguição e assédio por parte dos órgãos de segurança do Estado. De modo algum queria que vocês se interassem desta situação. Não queria gerar mais preocupações.

Tão pouco disse a meus alunos e só conversei sobre minha situação com um par de colegas que me brindaram com seu total apoio. Por isso minha viagem foi repentina e discreta ao mesmo tempo.

No momento em que fui arbitrariamente privado da liberdade por autoridades migratórias mexicanas, me encontrava concluindo o pós-doutorado. Não estava recrutando militantes nem organizando células terroristas.

É possível que os governos de Felipe Calderón e Álvaro Uribe considerem que formar consciência crítica e orientar pesquisas sobre a história política de México e Colômbia seja uma “atividade terrorista”. Desde o 11 de setembro os setores de ultra direita tem recorrido ao pretexto do “terrorismo” para perseguir não só aos movimentos de oposição mas também os intelectuais críticos.

Minha vida tem estado estreitamente ligada à atividade acadêmica na universidade pública, há décadas, quando me vinculei a ela, primeiro como estudante e posteriormente como docente: a Universidade Distrital, a Universidade de Cundinamarca, a Universidade de Cauca, a Universidade de Antioquia e a Universidade Nacional podem atestar isto. Desta forma posso dizer que a perseguição da qual sou vítima hoje não é só uma perseguição contra mim, mas contra a universidade pública em seu conjunto.

Queridos pais, trairia vosso legado e a de meus Mestres – entre eles o de Jaime Pardo Leal, Orlando Fals Borda e Eduardo Umaña Luna – se ante as ameaças de um procurador, que promete confinar-me mais de 40 anos neste cárcere, pelos delitos de “conspiração para delinquir com fins terroristas”, “rebelião” e “financiamento de grupos terroristas”, me retratasse das idéias de justiça que tenho defendido em minhas palestras, nos diferentes foros públicos e em meus escritos.

Trairia também a meus alunos, a meus amigos e ao povo colombiano, se me rendo às pressões de um governo narcoparamilitar. Sei que milhares de mãos se uniram para defender a liberdade de pensamento, sei que milhares de vocês se juntaram para lançar um grito de justiça; sei que mais cedo que tarde, as mudanças que reclama este país abrirão caminho e os opressores de hoje estarão amanhã ajoelhados implorando clemência ante o tribunal da História.

Queridos pais, só queria que a vida me presenteasse com mais uns anos de existência para ver florescer em nosso território uma nova Colômbia, onde as crianças não tenham que chorar a ausência de seus pais mortos na guerra; onde o campesino tenha garantido o seu pedaço de terra e ajuda técnica para cultivá-la; onde a educação, a saúde e a habitação sejam um direito prioritário e não privilégio de uns poucos; onde os que exercemos o pensamento crítico não sejamos tratados como terroristas.

Meus queridos velhos, podem sentir-se felizes de que seu filho esteja hoje sentado no banco dos réus não como assassino ou corrupto, mas por defender os ideais de justiça e liberdade que vocês me ensinaram desde criança e que levo no coração como o mais precioso tesouro que a vida me deu.

Por isso, se este tribunal que hoje me julga chegar a condenar-me, assumirei com firmeza e dignidade a pena, porque me estimula a convicção de milhares de homens e mulheres que sonhamos com “outra Colômbia possível”.

Abraços fraternais,

Seu filho

Miguel Ángel Beltrán Villegas

Cárcere Nacional "Modelo"
Pavilhão de “Alta Segurança”

http://www.kaosenlared.net/noticia/107534/carta-mis-padres-miguel-antonio-beltran-alba-ruth-villegas

http://www.prensarural.org/spip/spip.php?article3256


[1] Sijin: Polícia Judicial e Investigativa

[2] chusmeros: termo pejorativo para chamar os guerrilheiros dando a entender que eram assaltantes armados

[3] cachiporro: é a forma pejorativa como eram chamados os militantes do Partido Liberal Colombiano

[4] Godo: termo pejorativo pra chamar um cidadão do Partido Conservador, dando a indicar que era retrógrado, atrasado... (dando com isso a idéia que os liberais eram progessitas)

[5] pájaros (pássaros): assim foram chamadas os primeiros bandos de paramilitares organizados pela oligarquia na década de 1950, querendo indicar que chegavam às casas, assassinavam as pessoas e rapidinho fugiam.

[6] chulavita: Resulta que a Polícia Política montada pelo Partido Conservador para assassinar liberais, comunista e conservadores que desertavam do Partido, teve sua origem num município chamado Chulavita. Então a esse corpo policial o povo deu o nome de 'chulavita'.

[7] Gaitán: Jorge Eliécer Gaitán, dirigente liberal y seguro candidato a ganar las elecciones en 1.948, assassinado pela CIA junto com a oligarquia mais reacionária da Colômbia.

[8] sangrenegra: pseudônimo de um mitológico guerrilheiro liberal.

[9] laureanistas: seguidores de um político nefasto para a Pátria, chamado Laureano Gómez, pró-imperialista até a morte.

[10] Las guerrillas del Llano: As Guerrilhas das planícies orientais da Colômbia.


http://anncol-brasil.blogspot.com/2009/12/carta-meus-pais-miguel-antonio-beltran.html
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2 comentários:

Nise Jinkings disse...

Bela carta! A trajetória de militância e amor aos livros desse professor, e o exemplo de integridade, coragem e luta política de seus pais e familiares diz muito da nossa história também.
Beijos!!!!

Nise

Isa Jinkings disse...

Leilinha,
Terminei de ler toda a carta, apesar de longa e de eu ter que sair, e senti as lágrimas correndo ao lembrar muito do meu amor, quanto se parece a ânsia de saber, a preferência pela leitura, desde criança. Linda carta!
Beijos.
mamãe

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