O partido único da mídia
Ao se fixar nos seus próprios dogmas, desprezando o real,
o poder dos partidos midiáticos tende ao enfraquecimento. Ao se
descolarem da realidade perdem credibilidade e apoio, cavando sua
própria ruína. Trata-se de um caminho trilhado de forma cada vez mais
acelerada pela mídia tradicional brasileira.
Laurindo Lalo Leal Filho
A superficialidade e o descrédito a que
chegaram os meios de comunicação tradicionais no Brasil é incontestável.
Posicionamento político-partidário explícito e "reengenharias"
administrativas estão na raiz desse processo.
Dispensas em massa
de profissionais qualificados explicam, em parte, a baixa qualidade
editorial. Foi-se o tempo em que ler jornal dava prazer. Mas fiquemos,
por aqui, apenas na orientação política.
A concentração dos
meios e a identidade ideológica existente entre eles criou no país o
"partido único" da mídia, sem oposição ou contestação. Ditam políticas,
hábitos, valores e comportamentos. O resultado é um grande descompasso
entre o que divulgam e a realidade. Hoje, para perceber esse fenômeno,
não são mais necessárias as exaustivas pesquisas em jornalismo
comparado, tão comuns em nossas academias lá pelos anos 1980.
Agora
basta abrir um jornal ou assistir a um telejornal e compará-los com as
informações oferecidas por sites e blogues sérios, oferecidos pela
internet. São mundos distintos.
No caso da mídia brasileira
essa situação começou a se consolidar com a implosão das economias
planificadas do leste europeu, na virada dos anos 1980/90.
Em
1992, no livro "O fim da história e o último homem", ampliando ideias já
apresentadas em ensaio de 1989, Francis Fukuyama punha um ponto final
no choque de ideologias, saudando o capitalismo como modo de produção e
processo civilizatório definitivo da humanidade, globalizado e
eternizado.
Tese rapidamente endossada com euforia pela mídia
conservadora e hegemônica que, a partir dai, pautaria por esse viés seus
recortes diários do mundo, transmitidos ao público. Faz isso até hoje.
Só
que, obviamente, a história não acabou. Ai estão as crises cíclicas do
capitalismo, neste início de milênio, evidenciando-o como modo de
produção historicamente constituído, passível de transformações e de
colapso, como qualquer um dos que o precederam. Mas a mídia trata o
capitalismo como se fosse eterno, excluindo de suas pautas as
contradições básicas que o formam e o conformam. Dai a pobreza de seus
conteúdos e o seu distanciamento da realidade, levando-a ao descrédito.
De fomentadora de ideias e debates, fortes características de
seus primórdios em séculos passados, passou a estimuladora do
conformismo e da acomodação. Para ela o motor história não é a luta de
classes e sim o consumo, apresentado em gráficos e infográficos,
alardeando números e índices que, muitas vezes, beiram o esotérico.
Se
nos anos 1990 essas políticas editoriais obtiveram relativo êxito
apoiadas na expansão do neoliberalismo pelo mundo, na última década a
realidade crítica abalou todas as certezas impostas ideologicamente. As
contradições vieram à tona.
No entanto a mídia, reduzida e
conservadora, especialmente no Brasil, segue tratando apenas das
aparências, deixando de lado determinações mais profundas. Movimentos
anti-capitalistas espalhados pelo mundo são mencionados, quando o são,
particularmente pela TV, como "fait-divers", destituídos de sentido,
a-históricos. Seguindo rigorosamente a tese de Fukuyama.
Fazendo
jus ao seu papel de "partido único", os meios oferecem ao público,
como elemento condutor de sua ideologia conservadora, algo que
genericamente pode ser chamado de kitsch. Definição dada pelos alemães
no século passado para a arte popular e comercial, feita de fotos
coloridas, capas de revistas, ilustrações, imagens publicitárias,
histórias em quadrinhos, filmes de Hollywood. Atualizando seriam os
nossos programas de TV, os cadernos de variedades de jornais e revistas,
as músicas e as preces tocadas no rádio.
Esse é o prato
diário da mídia, oferecido em embalagens sedutoras e entremeado de
informações ditas jornalísticas, apresentando o mundo como um quadro
acabado, inalterável. Não existindo alternativas, resta o conformismo
anestesiado pelo consumo, ainda que para muitos apenas ilusório.
Claro
que esse quadro midiático tem eficácia até certo momento, enquanto
realidade e imaginário de alguma forma guardam proximidade. Mas ele
também é histórico e, portanto, mutável.
Enquanto as
contradições básicas da sociedade, aqui mencionadas, permanecerem
existindo, a integração das consciências "pelo alto" será irrealizável,
alertava Adorno, num dos seus últimos textos. Por mais que os meios de
comunicação se esforcem por integrá-las.
Ao se fixar nos seus
próprios dogmas, desprezando o real, o poder dos partidos midiáticos
tende ao enfraquecimento. Ao se descolarem da realidade perdem
credibilidade e apoio, cavando sua própria ruína. Confrontados com a
internet desabam. Trata-se de um caminho trilhado de forma cada vez mais
acelerada pela mídia tradicional brasileira. Sem falar na contribuição
dada a esse processo pela queda da qualidade editorial, tema que fica
para outro momento.
Laurindo Lalo Leal Filho, sociólogo e
jornalista, é professor de Jornalismo da ECA-USP. É autor, entre outros,
de “A TV sob controle – A resposta da sociedade ao poder da televisão”
(Summus Editorial). Twitter: @lalolealfilho.
Fonte:
Carta Maior