O movimento hippie desperta reações diversas e apaixonadas. Uns rotulam de "um bando de porras-loucas, drogados e vagabundos", outros, de que "era só sexo, drogas e rock and roll" e, ainda, "um movimento de burguesinhos", "alienados", e por aí vai. Muitos o compreendem como a utopia de romper as estruturas da sociedade por meio da prática de ações libertárias. Não costuma ser prudente definir com rigidez movimentos dessa amplitude. A dinâmica da história ensina que o movimento social surge, geralmente, de um acúmulo de fatores que tem sua catarse em dado momento. O epicentro do movimento foi, sem dúvida, nos EUA, a reação à guerra contra o tão minúsculo quanto bravo povo vietnamita.
O movimento hippie não pregava apenas a paz e o amor. Ingênuo ou não, eles queriam o bicho homem mais importante que tudo. Queriam a sociedade voltada para o bem estar da humanidade. Pregavam a liberdade de dispor do próprio corpo, de viver e de amar como quiser. "Make Love. Not War". Mas o cerne do movimento era contra a sociedade do consumo.
No mundo todo, a juventude começava a reagir ao conservadorismo e à repressão sexual. Focos pelo mundo, foi nos EUA onde se percebeu a cristalina explosão daquela ruptura de valores. Após a Segunda Guerra Mundial, ainda durante o nefasto macartismo, surgiu o movimento que ficou conhecido como beatnik, liderado por poetas e estudantes. A geração beatnik abria a cabeça para conhecer a cultura negra, a cultura nativa dos índios, além da cultura oriental. Conheceram aí filosofias e religiões, além da música indiana, que passaram a influenciar a criação artística. O termo hippy é derivado de "hipster", usado para designar os brancos que se envolviam com a cultura negra e a índigena. A contracultura cria corpo com o combate à política externa de dominação estadunidense.
Tinha início, nos EUA, uma onda de protestos contra a guerra do Vietnã. No Brasil, contra a ditadura. A repercussão dessa guerra era mundial, assimilada de acordo com as conjunturas locais. No Brasil, a guerra repercutia na resistência contra a ditadura, que era apoiada e orientada pelo mesmo agressor. O pensamento de
Ho Chi Min tinha grande aceitação por representar um povo heróico que resistia à ocupação do gigante.
A fotografia e a televisão levam as notícias da guerra e promovem um grande impacto no mundo. Nos EUA, além do conservadorismo, havia quem apoiasse a guerra, enganados pela propaganda. Mas não o meio intelectual e estudantil, que repudiava firmemente a política externa de Washington. Após as primeiras manifestações, intramuros universitários, os protestos tomaram as ruas. Percebendo o poder da comunicação de massa, exigiam liberdade de expressão, questão já abordada desde 1964, quando ocorreu o "Free Speech Movement" (Movimento pela Liberdade de Expressão).
A luta contra a guerra une a juventude do mundo. “Mas quem tomou as grandes decisões em 1968? Os movimentos mais característicos do 68 idealizaram a espontaneidade e se opuseram à liderança, estruturação e estratégia”, disse Eric Hobsbawn. Havia uma nova maneira de pensar e de agir. Inovou-se em tudo. As manifestações, sob a vista da TV, eram muito visuais, com slogans, cartazes coloridos, faixas e muita pichação. Se o carro chefe dos protestos nos EUA era a invasão ao Vietnã, na França era o autoritarismo e na América Latina a luta contra a ditadura.
Uma parcela da juventude estadunidense passa a manifestar-se de uma forma diferente: tentavam traduzir seus anseios - de acabar com a guerra e com o consumismo da sociedade capitalista - pregando um estilo de vida alternativo. Eles eram contra a guerra e defendiam que se precisava mudar a sociedade. Questionavam a autoridade, a hipocrisia da moral burguesa e a ganância. Criticavam os meios de comunicação de massa e a economia de mercado. Repudiavam a repressão sexual cristã e, para defender a liberdade sexual, praticavam o amor livre ostensivamente. Vestiam-se com roupas coloridas e artesanais. As roupas usadas, compradas nos bazares, recebiam bordados, bótons, retalhos, incluindo brincadeiras com roupas formais como o paletó.
Usavam flores, colares, pulseiras, tudo muito colorido como a celebrar a vida. A busca por novas culturas trouxe-lhes conscientização sobre os benefícios do uso de produtos naturais e o amor à natureza. Passaram a viver em comunidades rurais, onde consumiam o que plantavam. A maconha substituiu as drogas da sociedade de consumo, o álcool e o cigarro. O trabalho era coletivo. Educavam os filhos coletivamente. Tudo era dividido e respeitado pela comunidade. Para a sobrevivência, fabricavam peças artesanais, que eram vendidas juntamente com o que plantavam. Era a sua utopia de sociedade igualitária.
Em contraponto à convocação para a guerra, os hippies pregavam a desobediência civil e deixavam os cabelos crescerem. Nas drogas, procuravam a abertura da mente a novas percepções, a elevação do espírito, a meditação e a criatividade. Além da "marijuana", adotaram o uso do LSD, que já vinha sendo difundido nas universidades. Usavam também o "cogumelo mágico", encontrado em fazendas onde se cria gado e que contém substâncias alucinógenas.
A música, principalmente o rock, foi a maior expressão artística desse movimento, cujos expoentes, com letras inteligentes e de conteúdo contestador, são
Bob Dylan,
Joan Baez,
Janes Joplin,
Jimi Hendrix e
Joe Cocker. A música "Blowin in the Wind", de Dylan tornou-se quase um hino. O festival de
Woodstock - Festival de Música e Artes de Woodstock, em uma fazenda nos arredores de Nova Iorque, foi o momento mais marcante do movimento, com três dias de musica e quase 500 mil pessoas presentes. Foram três dias de paz, amor e musica, com liberdade sexual, liberdade para usar drogas livremente e um espírito de comunidade que garantiu a ordem - nenhum registro de violência ou roubo -, deixando à policia apenas o controle do trânsito caótico.
A sociedade capitalista, como de hábito, absorveu oportunisticamente o movimento contestatório e, desvirtuando o estilo de vida, transformou-o em mais uma mercadoria a consumir. A moda hippie passou a ser exposta em vitrines e a indústria cultural explorou ao máximo a arte e a música produzidas. Decepcionados, os autênticos praticantes passaram a evitar a superexposição. Por outro lado, o preconceito da classe média, por toda parte, marginalizava aqueles que aderiam à filosofia hippie. Os "ripis", estendendo-se aos artesãos, passaram a ser sinônimo de vagabundos, desocupados e maconheiros.
O legado desse movimento, porém, é significativo: foram eles que introduziram a preocupação com o meio ambiente e com a natureza e introduziram os alimentos naturais. Questionaram a convenção do casamento e pregaram a revolução sexual e a igualdade, reflexões que repercutiram com importância nas décadas que seguiram. Introduziram, também, a ioga, a meditação, as culturas ocidentais e primitivas, a literatura esotérica, ampliando as reflexões filosóficas em contraponto ao catolicismo dominante. Exibiram ao mundo que "outro mundo é possível". O seu espírito de experimentação e as suas inquietações colocaram em cheque a cultura de massa, influenciando positivamente a juventude.
Aqui no Brasil, enquanto isso, o movimento que culminou com o Tropicalismo, guarda uma significativa identidade com o hippie: o psicodelismo, a busca de inovações, a rebeldia e a quebra de tabus, entre outros. O regime ditatorial, implantado com o golpe militar de 1964, provocou uma necessidade de expressão cultural que se refletia nas artes. A música de protesto, as artes gráficas, o teatro e o cinema tiveram intensa produção nesse período. Os
Mutantes à frente, junto com
Rogério Duprat,
Tom Zé,
Gilberto Gil e Caetano Veloso, revolucionaram a música e a poesia. Eles também buscaram se diferenciar no comportamento social, na vestimenta e na busca de culturas esotéricas.
Mais à frente,
Raul Seixas funda a Sociedade Alternativa, com influência esotérica e da cultura hippie, fortemente libertário. "Faz o que tu queres, pois é tudo da lei".
Na política, não foram vitoriosos, nem os que lutaram com as flores e nem os que pegaram nas armas. Do que foi plantado, no entanto, muitas sementes germinaram. As liberdades democráticas, a participação da mulher, a igualdade racial, a supremacia intelectual sobre as trevas da repressão comportamental são frutos que abriram caminhos.