Eu sei que a pauta do momento é o massacre nas penitenciárias brasileiras. Mas precisamos falar do caso da sra. Romeia Pereira da Silva. Até porque, se prestarmos atenção, veremos nele algumas pistas que ajudam a entender como nos afundamos nesse desastre humanitário, um processo de cada vez.
A sra. Romeia foi presa em flagrante, estilo pé na porta e voz de prisão, em 2004, pelo crime de “receptação qualificada”, que, segundo o Código Penal, significa adquirir, vender ou de qualquer forma utilizar um objeto que seja produto de crime. Basicamente, a sra. Romeia trabalhava em um lugar onde se guardavam e vendiam aparelhos de som automotivos – uns “CD players” –, sendo alguns deles de provável origem ilícita. O nome da loja na qual ela trabalhava, é verdade, não ajudava. Era “Sucauto”. E todos nós conhecemos uma “Sucauto”, certo?
A partir daí, a sucessão dos fatos deveria ter sido a seguinte: 1) seria iniciado o inquérito, a evidência contra a investigada seria recolhida e periciada, seriam ouvidos os depoimentos dela e de possíveis testemunhas, e o delegado relataria os fatos; 2) o Ministério Público, com base nos elementos apurados, decidiria se denunciaria a investigada à Justiça; 3) Caso fosse oferecida e aceita a acusação formal pelo Judiciário, a investigada passaria a ser processada nos termos da lei e, se satisfeitas todas as condições exigidas pelo Direito Penal, condenada pelo crime que lhe foi imputado. Neste caso, sra. Romeia receberia uma pena que deveria ser de três a oito anos de reclusão, além de multa. Na prática, considerando a sua pobreza e o fato de ser ré primária, as duas ficariam no mínimo legal, talvez um pouco mais.
Não se sabe por qual motivo, o delegado responsável decidiu iniciar, ao invés de um, nove inquéritos iguais, um para cada “CD-Player”
O que aconteceu, contudo, foi completamente diferente. Não se sabe por qual motivo (pois fundamento jurídico não há), o delegado responsável decidiu iniciar, ao invés de um, nove inquéritos iguais, um para cada “CD-Player” encontrado no local. Desses nove inquéritos resultaram nove idênticos processos penais, em relação ao mesmo fato e contra a mesma pessoa, lembre-se. E, adivinhem só, todos eles chegaram a semelhante fim: nove condenações análogas, depois somadas. Assim, para coroar essa aberração jurídica, chegamos à inacreditável pena total de 34 anos, 10 meses e 4 dias de prisão!