sexta-feira, 24 de junho de 2016

Nise da Silveira - pioneira brasileira para iluminar tempos obscuros

Nise da Silveira: uma pioneira brasileira para iluminar tempos obscuros
Poucas vezes um filme nos ajuda a resgatar algum personagem tão necessário à conjuntura. Nos tempos sombrios em que vivemos, “Nise - O coração da loucura” (do diretor Roberto Berliner, lançado nacionalmente em abril) destaca a figura de uma das primeiras médicas brasileiras, Nise da Silveira.
Por Rosana Onocko-Campos
 
O filme recorta uma parte relevante de sua biografia, mas não a esgota. Nise foi pioneira ao se formar médica na Universidade Federal da Bahia, na qual ingressou como única mulher entre 157 homens, com apenas 16 anos de idade. Se formou em 1926, com uma tese sobre a criminalidade da mulher no Brasil. Em 1932, como médica residente, foi morar no Hospício Nacional de Alienados, na Praia Vermelha. Em 1936, foi presa sob acusação de ter leituras comunistas em seu quarto do hospital. Ficou presa pouco mais de um ano e, na prisão, fez amizade com Graciliano Ramos.
Ficou afastada e viveu quase em clandestinidade até 1944, quando foi readmitida no Engenho do Dentro. Foi lá que ela foi apresentada aos “novos” métodos de tratamento: lobotomia, coma insulínico e electroconvulsoterapia. Nise se negou a praticá-los e iniciou em um pequeno quarto a terapia ocupacional. Nise da Silveira foi pioneira no tratamento de pacientes asilados com graves transtornos mentais por meio da arte em suas variadas formas. Fez isso no Rio de Janeiro, no início do século 20, antes dos movimentos antimanicomiais internacionais — por exemplo, de Laing e Basaglia. 
Nise buscou seus primeiros pacientes entre aqueles considerados intratáveis pelo sistema asilar e os pôs no centro de suas preocupações. Tinha uma atenção e um respeito imenso por cada uma daquelas vidas. Utilizou seus contatos pessoais com o mundo da crítica artística para tirar do silenciamento esses novos pintores e escultores. Levou suas pinturas ao outro lado do Atlântico, conseguiu interessar o próprio Jung em suas pesquisas sobre as relações entre arte e inconsciente. Os auxiliares eram pessoas com instrução fundamental e Nise se encarregou de sua formação.
Em 1952, criou o Museu de Imagens do Inconsciente, para transformar em um centro de estudo e pesquisa o trabalho de artes que já a motivavam intensamente. A colaboração com artistas foi fundamental para todo o desenvolvimento posterior1. Atuava em várias frentes: no Museu de Imagens do Inconsciente; na Casa das Palmeiras (espécie de prenúncio dos Centros de Atenção Psicossocial) e no grupo de estudos de Jung que fundou. 
Faltou à Nise interpretada no filme por Gloria Pires a fragilidade comovente da Nise verdadeira, que vemos só no trecho de documentário final e que ressalta ainda mais sua força, sua fibra e seu brilhante humor. Os que a conheceram dizem que era uma pessoa que causava vivo impacto. Sabia ser acolhedora e hospitaleira, vivia rodeada de gatos. E acreditava que estes adivinhavam a personalidade das pessoas — detestava pessoas avessas aos animais. Viveu muito modestamente e sempre se definiu como uma servidora pública. 
Enfrentou um contexto duro, impiedoso. Enfrentou a dureza da cientificidade machista que desprezava seus achados e que continuava a prescrever ETC e lobotomias. Perdeu alguns pacientes queridos. Perdeu algumas batalhas. Mas nunca desistiu. Morreu em 30 de outubro de 1999. Rebelde, do jeito que era. É esse aspecto da Nise que gostaria de destacar como figura exemplar e luminosa nestes tempos sombrios, para servir de exemplo e motor aos jovens interessados na Saúde Mental. 
1. Dados extraídos da apresentação do livro Nise da Silveira: caminhos de uma psiquiatra rebelde, de Luiz Carlos Mello. 

Rosana Onocko-Campos é Coordenadora do Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas e supervisora dos Programas de Aprimoramento em Saúde Mental e em Planejamento e administração de serviços de saúde
http://www6.ensp.fiocruz.br/radis/revista-radis/165/pos_tudo/nise-uma-pioneira-brasileira-para-iluminar-tempos-obscuros

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