segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Extremismo. Que extremismo?

Como outros gigantes da Economia de Dados, o Facebook deslocaliza a filtragem de dados para um exército de moderadores em empresas localizadas do Oriente Médio ao Sul da Ásia. Isso foi confirmado por Monika Bickert, do Facebook.
Esses moderadores têm um papel no controle daquilo que deve ser eliminado da rede social, a partir de sinalizações dos usuários. Mas a informação é então comparada a um algoritmo, que tem a decisão final.

A silenciosa ditadura do algoritmo
Por Pepe Escobar | Tradução: Inês Castilho | no site Outras Palavras

Em sociedades digitalizadas, decisões cruciais sobre a vida são tomadas por máquinas e códigos. Por que isso multiplica a desigualdade e ameaça o direito à informação e a democracia 

Vivemos todos na Era do Algoritmo. Aqui está uma história que não apenas resume a era, mas mostra como a obsessão pelo algoritmo pode dar terrivelmente errado.
Tudo começou no início de setembro, quando o Facebook censurou a foto ícone de Kim Phuch, a “menina do napalm”, símbolo reconhecido em todo o mundo da Guerra do Vietnã. A foto figurava em post no Facebook do escritor norueguês Tom Egeland, que pretendia iniciar um debate sobre “sete fotos que mudaram a história da guerra”.
Não só o seu post foi apagado, como Egeland foi suspenso do Facebook. O Aftenposten, principal jornal diário da Noruega, propriedade do grupo de mídia escandinavo Schibsted, transmitiu devidamente a notícia, lado a lado com a foto. O Facebook pediu então que o jornal apagasse a foto – ou a tornasse irreconhecível em sua edição online. Antes mesmo de o jornal responder, artigo e foto já haviam sido censurados na página do Aftenposten do Facebook.
A primeira ministra norueguesa, Erna Solberg, protestou contra tudo isso em sua página do Facebook. Também foi censurada. O Aftenposten então sapecou a história inteira em sua primeira página, ao lado de carta aberta a Mark Zuckerberg, assinada pelo diretor do jornal, Espen Egil Hansen, acusando o Facebook de abuso do poder.
Passaram-se 24 longas horas até que o colosso de Palo Alto recuasse e “desbloqueasse” a publicação.
Uma opinião embrulhada em código
O Facebook empenhou-se ao máximo para controlar os danos depois do episódio. Isso não alterou o fato de que o inbroglio “menina da napalm” é um clássico drama do algoritmo, como ocorre na aplicação de inteligência artificial para avaliar conteúdo.
Como outros gigantes da Economia de Dados, o Facebook deslocaliza a filtragem de dados para um exército de moderadores em empresas localizadas do Oriente Médio ao Sul da Ásia. Isso foi confirmado por Monika Bickert, do Facebook.
Esses moderadores têm um papel no controle daquilo que deve ser eliminado da rede social, a partir de sinalizações dos usuários. Mas a informação é então comparada a um algoritmo, que tem a decisão final.
Não é necessário ter PhD para perceber que esses moderadores não têm, necessariamente, vasta competência cultural, ou capacidade de analisar contextos. Isso para não mencionar que os algoritmos são incapazes de “entender” contexto cultural e certamente não são programados para interpretar ironia, sarcasmo ou metáforas culturais.
Os algoritmos são literais. Em poucas palavras, são uma opinião embrulhada em código. E no entanto, estejamos atingindo um estágio em que a máquina decide o que é notícia. O Facebook, por exemplo, conta agora apenas com o algoritmo para definir quais hstórias coloca em destaque.
Pode haver um lado positivo nessa tendência – como o Facebook, o Google e o YouTube usarem sistemas para bloquear rapidamente vídeos do ISIS e propaganda jihadista semelhante. Logo estará em operação eGLYPH – um sistema que censura vídeos violam supostos direitos autorais por meio  “hashing”, ou codificação para busca rápida. Uma única marca será atribuída a vídeos e áudios considerados “extremistas”, possibilitando assim sua remoção automática em qualquer nova versão e bloqueando novos uploads.
E isso nos traz para um território ainda mais turvo; o próprio conceito de “extremista”. E os efeitos, sobre todos nós, de sistemas de censura baseados em lógica algorítmica.
Como as Armas de Destruição Matemática controlam nossa vida
É neste cenário que um livro como Armas de Destruição em Math [ou “Armas de Destruição Matemática”] de Cathy O’Neil (Crown Publishing), torna-se tão essencial quanto o ar que respiramos.
Leia na íntegra aqui:  http://outraspalavras.net/posts/a-silenciosa-ditadura-do-algoritmo/

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Só existe uma maneira de conter a violência do Rio - cinco tópicos



I
"Demissão de secretário de Segurança é o começo do fim das UPPs", diz delegado
Delegado Orlando Zaccone fala sobre as consequências da demissão do Secretário de Segurança José Mariano Beltrame
Por Fania Rodrigues, Brasil de Fato

Só existe uma maneira de conter a violência do Rio que é promover o debate sobre a legalização das drogas. E a legalização tem que vir junto com investimento em educação e outras políticas públicas. O uso dessas substâncias alcançou um estágio irreversível e precisamos falar sobre isso. O fato é que, infelizmente, nenhum problema será resolvido com o congelamento dos investimentos em saúde e educação, como o governo de Michel Temer (PMDB) está fazendo nesse momento com a proposta da PEC 241 que congela gastos públicos nos próximos 20 anos.

Em meio a uma das piores crises de violência dos últimos anos, o secretário estadual de Segurança do Rio de Janeiro José Mariano Beltrame pediu demissão nesta terça-feira (11), depois de uma década à frente da pasta. Beltrame foi responsável pela implantação do projeto de Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) nas principais favelas da cidade do Rio.

Para falar sobre as consequências da demissão, o Brasil de Fato entrevistou o delegado da Polícia Civil do Rio de Janeiro, Orlando Zaccone, doutor em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense (UFF).

O secretário de Segurança pediu a exoneração do cargo logo após intensos tiroteios em favelas na região de Copacabana, zona sul do Rio, durante operação na comunidade do Pavão-Pavãozinho, na segunda-feira (10). Três pessoas morreram, oito foram presas.
Leia mais aqui:
Autora: Fania Rodrigues
Brasil de Fato | Rio de Janeiro (RJ), 11 de Outubro de 2016 às 19:18

II
Nos EUA, legalização da maconha vai a votação em noveEstados
por Débora Melo — publicado 04/11/2016

Eleitores norte-americanos responderão sobre uso recreativo e medicinal na cédula de votação; pesquisa aponta 60% de apoio à liberação da erva
Na terça-feira 8, quando os norte-americanos irão às urnas escolher o sucessor de Barack Obama na Presidência e novos representantes no Congresso, eleitores de nove Estados decidirão, ainda, se o consumo de maconha deve ou não ser legalizado.

Arizona, Califórnia, Maine, Massachussets e Nevada votarão a legalização da erva para uso recreativo por adultos, algo que já é realidade no Distrito de Columbia e nos Estados do Colorado, Alasca, Oregon e Washington. Em Arkansas, Dakota do Norte, Flórida e Montana, por sua vez, o que está em jogo é a liberação do uso medicinal da cannabis, já permitido em 25 dos 50 Estados dos EUA.  LEIA MAIS AQUI

III

"A guerra às drogas é um mecanismo de manutenção da hierarquia racial"
por Débora Melo — publicado 27/07/2016

Em visita ao Brasil, ativista norte-americana formada em Harvard diz que a política proibicionista teve sucesso ao criminalizar negros e pobres
A guerra às drogas é uma ferramenta da qual a sociedade contemporânea depende para manter negros e pobres oprimidos e marginalizados. Esta é a opinião da ativista do movimento negro norte-americano Deborah Small, formada em Direito e Políticas Públicas pela Universidade de Harvard.

Em viagem pelo Brasil para uma série de palestras sobre política de drogas, racismo e encarceramento, Small desembarca nesta quarta-feira 27 em São Paulo, depois de passar por Rio de Janeiro, Salvador e Cachoeira, no Recôncavo Baiano.

Em entrevista a CartaCapital, a ativista fez um paralelo entre as polícias do Brasil e dos EUA – onde tem crescido a tensão com a comunidade negra – e defendeu que o Brasil assuma uma posição de liderança no debate regional. “A única coisa capaz de ajudar a América do Sul é dar um fim à política proibicionista”, disse a ativista.

Deborah Small já foi diretora de assuntos legais da New York Civil Liberties Union, pela qual se dedicou à defesa dos direitos dos presos. Depois ocupou o cargo de diretora de políticas públicas e articulação comunitária da Drug Policy Alliance e há cerca de dez anos criou a organização Break the Chains, cujo objetivo é conscientizar a comunidade negra norte-americana sobre os efeitos perversos da guerra às drogas. Confira a entrevista: http://www.cartacapital.com.br/sociedade/a-guerra-as-drogas-e-um-mecanismo-de-manutencao-da-hierarquia-racial

IV

Maconha, um mercado de quase R$ 6 bilhões

por Tory Oliveira — publicado 22/06/2016
Comércio formal da droga movimentaria R$ 5,69 bi por ano no Brasil, segundo estudo de consultores da Câmara dos Deputados

Qual seria o impacto na economia brasileira caso a maconha fosse legalizada? Elaborado por um grupo de técnicos da Câmara dos Deputados, a pedido do parlamentar Jean Wyllys (PSOL-RJ), o estudo Impacto Econômico da Legalização da Cannabis no Brasil procurou responder a essa pergunta. O fim da proibição movimentaria um mercado de R$ 5,69 bilhões por ano.

O objetivo do estudo era trazer o aspecto econômico para o debate sobre a legalização, em geral centrado nas liberdades individuais e no fracasso da chamada política de "Guerra às Drogas". Com 40 páginas, o levantamento é de autoria dos consultores legislativos Adriano da Nóbrega Silva, Pedro Garrido da Costa e Luciana da Silva Teixeira.

Dispensário no Colorado é sustentado com os impostos da cannabis
Para chegar ao número de R$ 5,69 bilhões, os pesquisadores consideraram a existência de um público consumidor recreativo de Cannabis estimado em 2,7 milhões de brasileiros e estabeleceram um limite de compra de 40 gramas da substância por mês – 480 por ano. A restrição é a mesma aplicada no mercado regulado do Uruguai, primeiro país a oficializar a produção e o consumo da maconha para uso recreativo.

Com a mesma carga tributária aplicada hoje ao tabaco e o preço da grama fixado em R$ 4,20 (US$ 1,20), cada usuário gastaria R$ 2.073 anualmente com o produto, movimentando, no total, R$ 5,69 bilhões.
LEIA AQUI: http://www.cartacapital.com.br/economia/maconha-um-mercado-de-quase-6-bilhoes
 
V



"A guerra às drogas é uma decisão política", diz policial afastado do Denarc
Diego Souza Ferreira foi removido de seu posto depois de se notabilizar como um crítico da proibição
por Renan Truffi — publicado 08/08/2015

Quando ingressou na Policia Civil, Diego Souza Ferreira compactuava com um dos principais chavões que justificam a guerra às drogas no Brasil. Assim como vários de seus colegas, pensava que o tráfico era culpa dos usuários de maconha e cocaína. A sua visão começou a mudar quando estava trabalhando no Departamento Estadual de Investigações do Narcotráfico do Rio Grande do Sul (Denarc-RS), que investiga o tráfico de drogas no estado.

Com cargo no setor de inteligência, o policial passou a estudar o assunto na pós-graduação e começou a comparar o resultado das pesquisas com seu trabalho. "Fazíamos uma operação e pegávamos meia tonelada de maconha. Era uma baita operação. Mas aí descobri que, só no Rio Grande do Sul, nós tínhamos por estimativa um consumo de 114 toneladas de maconha", conta.

A repercussão da pesquisa acadêmica fez com que Ferreira fosse convidado para ser porta-voz da Law Enforcement  Against  Prohibition (Leap) no Brasil, uma organização internacional que reúne juízes, policiais e agentes da lei a favor da legalização de todas as drogas. Neste ano, pouco tempo depois de voltar de férias, Ferreira sofreu no Denarc o que diz serem represálias por conta de suas posições. Ele foi removido de seu posto, sem ser consultado. “Vieram algumas informações de superiores, veladamente, de que o que eu estava fazendo era incompatível com a função”, afirma.

Em entrevista a CartaCapital, o policial lamenta a punição e a força da tese da guerra às drogas no País. "Eu não sou a favor das drogas, sou a favor de uma nova política de drogas", diz.

Leia a entrevista: http://www.cartacapital.com.br/sociedade/a-guerra-as-drogas-e-uma-decisao-politica-diz-policial-afastado-do-denarc-3640.html

  

quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Onde estão os verdadeiros liberais brasileiros?

O silêncio dos liberais: raízes da vergonha brasileira

Cabe às ruas civilizar o mercado e as elites, a ponto de tornar a memória de Sobral Pinto algo mais que uma lápide extravagante no cemitério liberal.

Saul Leblon, Editorial Carta Maior

O que se busca caracterizar hoje no Brasil com a palavra golpe é na verdade um retrocesso equivalente a um ciclo de ‘des-emancipação social’. Sua abrangência e brutalidade correspondem a uma ruptura do pacto da sociedade sem consulta-la, o que dificilmente se completará sem atingir o núcleo duro das garantias individuais, as liberdades civis e os direitos políticos. Diante da escalada temerária, constrange o silencio daqueles que, ideologicamente, avocam-se a filiação ao republicanismo, à independência de poderes, a isonomia diante da lei e o respeito ao sufrágio universal.
Na devastação de um país trincado pela ofensiva conservadora, submetido a um dispositivo midiático que se aliou a milícias  de procuradores e caçadores de cabeças vermelhas, faz falta a voz e a coragem da defesa liberal da Constituição e do Estado de Direito.

Onde estão os verdadeiros liberais brasileiros?
Resulta inútil a busca no ambiente acoelhado das togas que se esgueiram na Suprema Corte.
Ou nos corredores da adesão grosseira do liberalismo acadêmico ao golpe.
Desse deserto avulta a memória de um grande advogado brasileiro, conservador nos costumes, mas ferrenho defensor dos direitos individuais, por isso escudeiro lendário dos perseguidos pelo autoritarismo de qualquer matiz.
A falta que faz um Sobral Pinto no Brasil do golpe de 31 de agosto de 2016 está pesada e medida na sua biografia.
Em abril de 1984, em discurso diante de um milhão de pessoas no comício das Diretas, na Candelária, a voz nonagenária levou a multidão ao delírio ao afirmar aquilo que hoje nenhuma toga pranteada tem o desassombro de repetir:
‘Quero falar à nação brasileira, através desta multidão de um milhão de conterrâneos. Nós queremos que se restaure no Brasil o preceito do artigo primeiro, parágrafo primeiro da Constituição Federal: ‘Todo poder emana do povo e em seu nome deve ser exercido’. Esta é a minha mensagem; este é o meu desejo; este é o meu propósito’.   
Não foi um casamento da conveniência com a oportunidade.
Heráclito Fontoura Sobral Pinto, jurista, advogado mineiro, conhecido como “Senhor Justiça”, ‘o homem que não tinha preço’  –porque nunca cobrou honorários de quase trezentos presos políticos que defendeu, entre eles Carlos Prestes, Arraes, Juscelino etc– jamais tolerou golpes e ditaduras.
Sobral não cobrava causas que envolvessem a defesa das liberdades democráticas.
Como advogado e liberal, considerava seu dever opor-se à violação da  Constituição.
Crítico do materialismo comunista (foi um dos fundadores da Pontifícia Universidade Católica, a PUC), chegou a manifestar simpatia pelo golpe de 1964.
Rapidamente corrigiu-se.
Uma semana após a derrubada de Jango, entendeu que a justificativa liberal do movimento era uma farsa.
E diante da farsa, não contemporizou. Escreveria então uma carta famosa ao ditador, general Castelo Branco:
‘Sinto-me no dever de comunicar (…) que os argumentos ora invocados para combater o comunismo foram os mesmos que Mussolini invocou na Itália em 1922 e que Hitler invocou em 1934 na Alemanha. (…) Vivo da advocacia, pela advocacia e, para a advocacia, por entre dificuldades financeiras e profissionais que só Deus conhece. Só tenho uma arma, senhor presidente: a minha palavra franca, leal e indomável’ (9 de abril de 1964).
Era assim o liberal a quem os generais consideravam mais difícil calar do que ao Congresso
Sobral foi o primeiro a utilizar a palavra ‘ditadura’ contra o regime.
Detido em 1969 no AI-5, passou a defender presos políticos, sendo lendária a altivez de sua presença em tribunais militares, a acusar o regime de exceção, dedo em riste em direção aos juízes fardados.
Aos pedidos de tolerância para as ‘inovações democráticas’ introduzidas na Constituição pelos juristas da ditadura, o velho  liberal reservava respostas demolidoras.
Vivo fosse, como reagiria Sobral ao entendimento recente da Corte Especial do Tribunal Regional Federa (SC,PR,RS), que isentou o juiz Sergio Moro em violações flagrantes da Lava jato –‘ porque uma operação especial não precisa seguir as regras dos processos comuns’, disseram os magistrados.
O velho jurista provavelmente dispararia seu canhão liberal autentico e indignado. Exatamente como fez diante de considerações equivalentes da ditadura em 1968: ‘Senhores, existe peru à brasileira, mas não democracia à brasileira. A democracia é universal, sem adjetivos’.
Sobral morreu em 1991.
Os liberais que hoje se oferecem à barganha com a história, colocando no plano secundário convicções inegociáveis do bravo jurista, não apenas silenciam diante da violação do artigo primeiro, parágrafo primeiro da Constituição Federal.
Vão muito além disso.
Endossam o ataque maciço, esférico, abusado –perverso em um quadro de recessão brutal– a vários outros direitos consagrados na Carta de 1988, engrossando um processo de ‘des-emancipação’ social de consequências imponderáveis.
A intolerância aos direitos sociais não é estranha à gênese do liberalismo.
De certa forma, o que se assiste hoje no Brasil é a viagem de volta ao cuore liberal reinante no ventre do capitalismo selvagem dos séculos XVIII e XIX.
O termo ‘des-emancipação’, cunhado pelo filósofo marxista italiano, Domenico Losurdo, no seu  livro ‘Contra-História do Liberalismo’, descreve o moedor de carne humana em ação nesses tempos pioneiros.
Mais que negar novos direitos, o que ressalta do bordão liberal nas sociedades inglesa, norte-americana e francesa é a determinação de ‘des-emancipar’.
Ou seja, devolver ao absoluto desamparo a parcela majoritária da sociedade privada dos meios pelos quais se reproduziam as relações de poder e produção no capitalismo.
É disso também que se trata no caso das reformas trabalhista e previdenciária anunciadas pelo golpe no Brasil. O mesmo se pode dizer das consequências da PEC 241 no acesso a direitos públicos essenciais  –a escola e a saúde, entre  outros.
O conjunto requer uma ruptura de ciclo histórico para se instalar. Mais que um golpe parlamentar, o regime da ‘des-emacipação ‘ no Brasil do século XXI exige a fascistização dos instrumentos de Estado.
A escalada policial de um Ministério Público e de um juiz que assombram a cidadania brasileira ao subordinarem o Estado de Direito a conveniências pessoais e partidárias ilustra o calibre da espiral em marcha. Ou não será disso que se trata quando, há uma semana das eleições o ministro da Justiça do golpe, o notório direitista radical do PSDB, Alexandre Moraes anuncia em campanha novas ações trepidantes da Lava  Jato e nesta segunda feira, o juiz Sergio Moro o confirma, prendendo o ex-ministro Palocci?
O ajuste de contas partidário, que não disfarça mais seu propósito seletivo, choca o ovo do arbítrio sob o manto virtuoso do combate à corrupção.
A sigla política que o conservadorismo não conseguiu vencer em quatro eleições presidenciais –e pela qual teme ser derrotado num quinto escrutínio, está sendo dizimada aos olhos da sociedade por um torniquete de interesses que enlaça, à desforra da plutocracia e dos derrotados de 2014, o ‘ajuste de mercado’ e o ‘messianismo jurídico’.
Quem irá detê-los?
O silêncio dos liberais autênticos sobrecarrega a tarefa que é sobretudo da rua.
Mais que o silêncio, o endosso mudo ou ‘técnico’ inocula na sociedade a anestesiante ampola da naturalização de uma ruptura que imobiliza e subjuga.
O decano da Suprema Corte do país apressou-se na semana passada em abençoar a prisão do ex-ministro Guido Mantega, realizada por força policial em um hospital onde o economista acompanhava a esposa, pre-sedada para uma cirurgia contra o câncer (leia a repulsa dos intelectuais de esquerda ao arbítrio)
Diante do repúdio generalizado, Sergio Moro recuou expondo a motivação eleitoreira de seu gesto.
Mas o burocrata de toga já havia sancionado o exibicionismo autoritário lendo trechos convenientes da legislação.
Não faiscou ali um grão da dignidade desassombrada de Heráclito Sobral Pinto.
Não teve a coragem, a altivez do velho jurista para arguir uma prisão escorada em motivação indigente: a declaração do empresário Eike Batista ao MP, de que atendera, ‘com recursos próprios’, a uma solicitação do ex-ministro de contribuição eleitoral ao PT  — isonômica, afirmou, conforme uma diretriz de doar ao PT, PSDB, Cristovam Buarque…
Disso tudo Moro pinçou a oportunidade de capturar Mantega em um hospital.
E o ‘liberal’ da Suprema Corte a tudo endossou.
Esse, de qualquer forma, não é um roteiro de duelo entre bons e maus; entre togas acoelhadas  e liberais autênticos.
O pano fundo que move as peças –e as define pela cumplicidade ou a resistência–  são as ressurgências dos instintos primais do poder econômico, num ciclo global em que o sistema todo passou dos limites e arrasta junto os fracos e os desprovidos de grandeza.
A ordem econômica mundial atravessou o Rubicão e não dá mostras de se autorregenerar como os mercados esperam de si mesmos.
Ao contrário.
Sinais de uma resiliência incurável, que a mídia local minimizou o quanto pode na determinação de afirmar a centralidade do ‘desgoverno’ petista, irrompem de todas as latitudes.
Os bancos centrais já injetaram cerca de U$S 10 trilhões nos mercados financeiros desde 2008, quando tudo começou.
Dinheiro destinado à aquisição de ‘papeis podres’, inflados na farra especulativa e  que agora murcham em linha com a anemia global.
Uma epidemia de juros negativos varre o planeta.
A tentativa de firmar as pernas bambas dos mercados financeiros com liquidez ilimitada engessou US$ 14 trilhões investidos em títulos públicos a taxas de retorno zero ou negativas.
Inútil.
As bolsas borbulham, mas antes de ser a recuperação é o aviso da maleita: são as empresas que recompram as próprias ações com o dinheiro grátis fornecidos pelos BCs.
A circularidade estéril rende dividendos à República dos Acionistas, bônus milionários aos diretores.
Zero de emprego.
Não poderia ser diferente.
Um número resume todos os demais: a indústria mundial do aço opera a 60% da capacidade.
A viabilidade siderúrgica exige 80% de uso do potencial instalado.
Não há demanda capaz de promover esse estirão.
Não é só uma conta de chegar.
Algumas coisas se perderam para sempre, dos anos 70 para cá.
O chão estrutural da demanda e do investimento capitalista  foi comprometido nos quarenta anos antecedentes em que o consenso neoliberal dizimou o emprego e o salário de qualidade.
Os maiores parques industriais do capitalismo –mas também fatias dos emergentes–  foram deslocados para o baixo custo asiático, em espécie ou através das importações de manufaturados (caso do Brasil).
Pior: a vertigem do Estado mínimo suprimiu o arsenal público que assegurava a manutenção da taxa de investimento na economia (financiamento e grandes obras).
Delegou-se à supremacia financeira a centralidade da acumulação. O desenvolvimento, a democracia, a política e demais instancias da sociedade –inclusive a subjetividade do nosso tempo, foram subordinados aos desígnios dos mercados sem lei.
Nos EUA, a classe média foi esfarelada e vive a sua pior situação econômica em 30 anos.
O poder de compra das famílias assalariadas da maior nação capitalista da terra está abaixo do nível pré-crise e mais aquém do pico de 1999.
A fatia dos salários na renda dos EUA é 5% inferior a do início do século.
Estamos falando propositalmente da economia que reuniria os sinais mais encorajadores  da ‘retomada’ diuturnamente anunciada e frustrada.
A estagnação evidencia a falta que faz tudo o que a democracia e o Estado cederam ao mercado nesse período.  
É nesse deserto que o conservadorismo brasileiro irrompe para golpear a democracia e reproduzir aqui receita que estrebucha no planeta.
A saber: escalpelar direitos e degradar relações de trabalho e assim maximizar a taxa de exploração do plantel em uso, já que não há espaço para incorporar novos contingentes à extração do suor.
A expressão ‘trabalho-livre’ nessas condições, diz Losurdo referindo-se às balizas liberais que ordenaram a exploração da mão de obra nos séculos XVIII e XIX, soa como um oxímoro.
O filósofo italiano recapitula o esforço épico dos destituídos para civilizar essa relação social fundada em interesses díspares, na qual a luta pela democracia social será sempre inconclusa e instável, defrontando-se regulamente com os limites da costura estrutural que a contradiz e repele.
Sem organização permanente, impossível reter conquistas, resistir ao assalto, avançar em direção a novos direitos.
É esse o maior flanco brasileiro evidenciado pela crise e o golpe.
O vazio abriu as porteiras à regressão liberal desavergonhada.
Losurdo chama a atenção para a flexibilidade das ideias diante do cinzel da história.
Originalmente a serviço da revogação da cidadania, posteriormente o liberalismo se adaptaria aos avanços sociais sólidos, como aconteceu nos anos de ouro do Estado do Bem-Estar Social, no pós-guerra europeu.
O elástico, porém, nunca rompeu o vínculo com a  origem .
O retorno ao estado bruto agora no Brasil confirma essa resiliência de cepa ao eleger um marco histórico a retroceder: a Carta emancipadora de 1988. E a ferramenta política a aniquilar: a sigla que, tendo feito ressalvas ao resultado da Constituinte de 1988, tornou-se o seu principal esteio ao chegar ao governo.
No livro de leitura pedagógica para entender os dias que correm, e os liberais que se agacham, Losurdo descreve  episódios históricos de ‘des-emancipação’ promovidos  pela retroescavadeira liberal que agora serve ao golpe no Brasil
Liberais do início do século XVIII, como Defoe e Benthan, viam com simpatia as workhouses erguidas em Bristol, por exemplo.
Essas penitenciárias dissimuladas compunham uma espécie de conjunção do regime escravo com o da liberdade.
Funcionavam para o capitalismo em fraldas como um almoxarifado do exército industrial de reserva, ademais de limparem as ruas das sobras das ‘classes infelizes’, livrando-as dos pobres, os bêbados, os pedintes, os desocupados e suas famílias.
Seriam necessários mais dois séculos, porém, para um candidato a prefeito no Brasil –um liberal— explicitar a intolerância gástrica à pobreza que enoja e causa vômito às sensibilidades superiores.
Como se vê, a seta do tempo não se quebrou. Mais recentemente, um novo choque de eficiência no capitalismo inglês de Thatcher e Cameron individualizaria as ‘casas de trabalho, desobrigando-se o poder público das despesas com alimentação e vigilância.

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