sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Poesia anos 1990

Celeste morreu em 1998. A hipocrisia não.

ABORTO
Maria Celeste Vidal 

Calem-se!
Exijo silêncio das bocas banguelas,
mentes e corações sujos.
Silêncio exijo para uma confissão.
E fora, juízes
pois não se julga uma opção.
Há um problema que é meu,
que nasceu dentro de mim.
Muitos me insultam,
não me consultam.
Este problema, que digo meu,
tem cúmplices aos montes:
o sistema, as igrejas, os maridos, os amantes,
mas ... o crime, a crueldade, a desalmada, a maldade
fui eu quem as cometeu.
Pois bem,
eu sou uma as-sas-si-na.
- Que sina!
Grávida de um feto
que entrou no óvulo da vida
sem calor, sem teto, .
por acaso,
ou no ocaso do amor.
- No óvulo da vida!

- Vida!
Mas, que vida?
Nos morros desabados,
nas prisões, metralhados,
nas garras do patrão,
nas mãos do esquadrão?
Mas, que vida?
Nas favelas sem escola
vivendo de esmola
nas ruas, becos cheirando cola,
na briga pelo lixo?
- Isso é Comunismo!
Nem precisaria ser
para sentir e saber que se deve,
que devo pensar nisso.
E corri. Ah! Como bati em portas!

O padre disse: "minha filha, isso é pecado. Reze"
e mandou um bilhete à Legião Brasileira, ao Serviço
Social,
politicamente imorais.
E que lentidão ...
para a urgentíssima solução
da minha dor correndo solta nos nervos,
nas veias, no coração.
- Você tem que assumir!

Ou melhor dito, se consumir.
A meus pais, irmãos, parentes,
não cabia pedir proteção pelo ato,
pelo fato real, de não poderem mais repartir o pão.

Nas fábricas e trabalhos diversos,
no reverso,
não aceitam grávidas
nem casadas no civil.
Pobre Brazil!
ou esperam que o filho nasça ...
Que trapaça!
para então demitir.
E se lhes perguntam: têm filhos?
é preciso mentir.
Sensores,
Repressores!

O pai da criança diz
que o filho de meretriz não tem pai
e diz mais: fez porque quis.
Quando a mulher é casada, o coro das mal-amadas,
submissas,
escravizadas soltam o maldito refrão:
- É sua obrigação.

Então, parei.
Refleti. Voltei.
Voltei pelo caminho da revolta
e, na volta,
entrei em ruas escuras, becos, vielas,
subi e desci morros
e encontrei...
quem me abrisse o útero
e esperei...
a hemorragia,
- que agonia!
que me livrou do feto
que, sem calor, sem teto,
o podia esperar ...

Nada de emoções hipócritas
não quero pena, nem lágrimas,
muito menos opinião sentimental.
Exijo discussão profunda no Ministério da Saúde
e o critério? É ter que me ouvir.
Quero ser tratada como gente,
de repente, aflita, desamada.
Exijo hospitais, médicos, assistentes sociais,
psicólogos,
muito especiais,
para me estenderem a mão
sem me forçarem a decisão.


E tem mais
Quero sumir das manchetes dos jornais,
TVs patronais, das mentiras cristãs.

Quero sair da Câmara e do Senado
aos quais mando um recado:
suspendam a sessão e esta encenação:
- V.Exa. é contra o aborto ou a favor?
Para eles, as leis não têm valor.

Abortar não é uma questão moral,
religiosa.
É uma questão de mulher. questão íntima de um, de
dois.
Questão de sentimento pessoal.
É questão de mulher ferida, usada, consumida,
reprimida em padrões,
tabus, conceitos, preconceitos, regras,
jogos capitalistas bem pensados,
traçados, negociados, que fizeram de nós
a serviçal submissa,
o sexo frágil, a censurada, a vigiada,
a prostituta em potencial.
Hoje a luta é de todas as minorias marginalizadas,
mas só à mulher
compete decidir sobre o uso do seu corpo, sobre
os filhos que venha a ter ou não ter.

Senhores da "camas"e senado:
usem o poder  que lhes passamos para resolver os
problemas da Forne.
da Terrra. Da habitação. Da saúde do povo.
do contrabando de crianças, do ouro, das pedras
preciosas.
Cuidem  dos jovens. Da educação.dos velhos.
Dos índios. Dos ladrões das bolsas e carteiras dos
bancos . Do salário aviltante dos trabalhadores.

Porque do nosso corpo e do nosso Útero
nós cuidamos, enquanto mulher.
Queremos uma sociedade livre
p'ra quando um filho for gerado
seja esperado
amado,
mas amparado pelo dever obrigatório e único,
do Estado.

Nenhum comentário:

BRASIL NUNCA MAIS

BRASIL NUNCA MAIS
clique para baixar. Íntegra ou tomos